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  • Tiago Moreira

Prólogo: O dia em que eles vieram...

 

Aprochegue-se, meu amigo, pois tenho uma história a contar.

É a história de um santo com um caminho a trilhar.

Vou falar-lhe sobre um Zé, um homem peregrino,

com uma força capaz de desafiar o destino.

Essa história não é de agora não, ela vem lá de trás.

Comecemos com ele menino, antes de tornar-se um rapaz...

Quatorze anos atrás...


O sol ainda não estava alto no céu, mas o vento sul e o céu tão limpo já prenunciavam um dia quente, seco e empoeirado, como os dias de sempre daquelas bandas.


Para os peões da fazenda, mais um dia árduo de trabalho.


Para os jagunços do Coronel, mais um dia entediado de vigília.


Mas para uma criança de sete anos, era um dia incomum, um dia sem escola.


Na casa-grande, correndo do quarto, Zequinha descera rapidamente as escadas rumo à sala de refeições. Mal sentara-se à mesa e já engolia ansiosamente o pão fresco, alternando as mordidas vorazes com goles generosos de leite recém-ordenhado.


A mente do menino não se concentrava no presente; pensava apenas em sair, juntar-se às crianças das redondezas e liderá-las em uma nova aventura de faz de conta. O que fariam naquele dia? Procurariam um tesouro enterrado próximo ao velho engenho? Cavalgariam pela fazenda em busca de malfeitores? Brincariam de piratas no rio? Procurariam animais exóticos na caatinga? Tantas possibilidades para um dia sem escola!


Apesar dos pedidos de Nhá Rosa para que comesse devagar, o menino saltou da cadeira com a mesma ânsia com que sentara. Sorridente e impaciente, Zequinha correu para o salão de entrada da casa-grande, passando pela arrumadeira Dita sem dar bom dia — talvez nem a tivesse notado ali. Abriu a porta, e a luz quente da manhã banhou a pele morena do garoto, escurecida por tantas aventuras ao sol.


Jão Bentecastro, chefe dos jagunços do Coronel, estava na velha cadeira de balanço na varanda, bem ao lado da entrada, com a espingarda em mãos. O súbito surgimento do garoto o fez se levantar num pulo. Zequinha parou ali mesmo ao ver o jagunço-mor, homem alto como uma montanha, de barba longa, grisalha e desgrenhada, uns dentes a menos na boca e um olhar de um olho só — sim, pois o outro, perdido numa briga de facas, se mantinha escondido sob um tapa-olho de couro preto.


"Dia, Jão!", sorriu Zequinha, mostrando também a falta de um dente que caíra há alguns dias. Ao contrário dos de Jão Bentecastro, o dente de Zequinha cresceria de novo, conforme afirmara sua mãe.


"Dia, patrãozinho!", sorriu o capanga, numa expressão de tranquilidade que o velho jagunço só mostrava a poucos.


"Cadê o pai?", arguiu o menino de cabelos pretos e encaracolados que lhe caíam à face.


Jão Bentecastro apontou para o sul. "O Coronel tá aí pela fazenda. Até quis ir com ele, mas o patrão me mandou vigiar a casa, então cá estou. Os animais estão agitados hoje, ele foi ver se não tem boitatá ou outro bicho perigoso andando por aí."


"Nossa, eu quero ver um boitatá, Jão!", disse empolgado o menino, já imaginando o que enfrentaria em seu faz de conta naquele dia.


"Quer ver não, moleque!", riu o jagunço, "Agora vai brincar, que quero trabalhar".


"Trabalhar na cadeira de balanço e com o olho fechado, né?", riu Zequinha.


Jão gargalhou. "Mas é claro! É um trabalho bom demais da conta, vixe!"


Zequinha acenou em despedida e desceu os degraus que separavam a varanda do campo aberto e seco do sertão. Jão Bentecastro acenou em resposta, mas o menino nem notou, apenas seguiu correndo para a vila dos empregados.


Com a cabeça envolta num turbilhão de ideias, Zequinha deixou a estrada de terra para cortar caminho pelo mato amarelado e ressequido. Movia-se com agilidade sem par, evitando buracos e espinheiros e desviando-se das árvores retorcidas. Logo chegaria à vila, onde encontraria Marianita, Bentinho, Quinzinho e os outros.


A princípio, o menino seguiu em alegre ansiedade, sem perceber que uma nuvem negra pairava distante ao sul.


Trabalhadores pararam para observar intrigados aquele fenômeno, mas Zequinha, perdido em pensamentos, nem reparou na anormalidade do evento. A nuvem negra se aproximava, dissipando-se em nuvens menores conforme ficava mais próxima.


O menino também não notou quando a curiosidade dos camponeses deu lugar a pânico. Trabalhadores correram por abrigo apontando para os céus.


De repente, um cavalo e seu cavaleiro bloquearam o caminho do garoto, finalmente removendo-o de seu estupor.


"José! Volte para casa agora mesmo!", ordenou aos gritos o Coronel Calabros, montado em seu corcel e de revólver em mãos.


"Mas pai...", o menino tentou argumentar sem entender o que acontecia. Seus olhos vasculharam os arredores, e só então percebeu a agitação. Trabalhadores corriam em diferentes direções, enquanto jagunços empunhando armas de fogo e facões vigiavam os céus.


"Não discuta, menino!", insistiu o coronel, "Vai pra casa e se esconde!".


As nuvens escuras já sobrevoavam a fazenda. Guinchados e urros ressoaram, trazidos pelo vento. Foi quando o menino percebeu: não eram nuvens, mas centenas de criaturas de cores e tamanhos diversos, vindas d'além da Catinga Danada. Os batedores da revoada circundavam pelos céus, e os primeiros deles já se lançavam ao solo, atacando os limites da propriedade.


De olhos arregalados e coração disparado, o menino se virou apavorado e correu de volta à casa-grande. Já o pai se pôs a galopar na direção de um grupo de trabalhadores assustados para ordenar-lhes que também buscassem abrigo.


Em passo apressado por meio da mata seca que ladeava as trilhas da fazenda, Zequinha olhou para os céus, onde mais e mais criaturas se ajuntavam. Percebeu que eram seres de asas coriáceas e corpos alongados.


Tiros distantes ecoaram, indicando o início de conflitos. Logo os ruídos se misturaram a urros monstruosos e gritos de horror.


Foi com ansiedade e um pouco de alívio que o menino deixou a mata seca e alcançou a trilha da casa-grande, que já surgia a umas poucas dezenas de metros à frente. Zequinha respirou fundo e voltou a correr. Trinta metros. Vinte metros. Quinze metros.


E então um estrondo e uma lufada intensa de vento vieram por trás, tirando o garoto do chão e jogando-o com violência à frente.


O menino caiu e rolou na terra batida e seca da trilha. Dor. Ouviu, então, um rosnado gutural e apoiou os braços para erguer a cabeça. Uma das criaturas estava diante dele, um monstro enorme, tão longo quanto três ou quatro homens altos, de olhos amarelos e apoiado sobre quatro patas. Escamas marrons cobriam todo o corpo da fera, e uma coroa de espinhos vermelhos nascia em sua cabeça e percorria toda a espinha até o fim da cauda longa e afunilada.


Paralisado pelo medo, Zequinha não reagiu quando o monstro abriu a bocarra e ergueu a pata dianteira na direção dele. O apêndice, com três longas garras afiadas, revelou ser uma mão quando surgiu um quarto dedo, um polegar opositor a princípio escondido. A fera agarraria Zequinha, e o menino nada podia fazer.


Foi quando veio um potente estampido, e o monstro recuou, urrando de dor e balançando a cabeça após um forte baque.


"Corre, Zequinha!", veio a voz de Jão Bentecastro, que vinha da casa-grande já recarregando a espingarda. O monstro se voltou ao recém-chegado. De um dos olhos da criatura, atingido pelo tiro, escorria sangue negro.


"Corre, seu moleque!", repetiu o jagunço.


O menino se esforçou a levantar, mas as pernas fraquejaram e o corpo o desobedecia. A tentativa atraiu a atenção do monstro, que tentou avançar sobre Zequinha mais uma vez.


Jão disparou novamente, e o tiro atingiu a cabeça da fera, mas não perfurou a couraça escamosa. Logo recuperada do impacto, a criatura se voltou ao atacante por um instante, mas não demorou a se atentar de novo no garoto, que se arrastava na direção do jagunço.


"Cê tá pensando em pegar o moleque e levar voando, né?", Bentecastro perguntou ao monstro, que surpreendentemente reconheceu as palavras e o fitou em resposta. "Cê não vai conseguir, porque eu tô aqui!", Jão ameaçou, cuspindo para o lado, largando a espingarda e sacando em seu lugar o fiel facão. "Se tiro não te fere, não faz mal. Sempre preferi brigar com faca! Em vez de pegar criança indefesa, calangão, vem em mim, que sou mais que homem crescido: aqui o cabra é macho!"


O monstro urrou para Jão, avançando furiosamente sobre ele. O homem rolou para escapar das garras da criatura, então saltou para longe dos dentes pontiagudos que tentaram envolvê-lo num segundo bote. Quando os dois se encararam de novo, o jagunço estava ileso, mas com o facão pingando sangue fétido. Já a fera exibia profundos e sangrentos cortes no braço e no pescoço.


Nisso, Zequinha já tinha conseguido se pôr em pé. Bentecastro ordenou de novo: "Já mandei correr, moleque da moléstia!"


O menino correu sem olhar para trás, deixando os dois combatentes a continuarem sua contenda. À frente, viu Nhá Rosa esperando à porta da casa-grande e gesticulando desesperadamente para ele se apressar.


Nhá Rosa fechou a porta assim que Zequinha passou, então segurou o menino e puxou-o com ela. "Vem pro meu quarto, sinhôzinho", informou a empregada, "não sobe as escadas não, fica aqui no andar de baixo que é mais seguro!"


Assim feito, trancaram-se no quarto.


"O que são essas coisas, Nhá Rosa?", perguntou o menino, fitando a velha negra que por tantos anos servira a seu pai.


"São coisa-ruim, Zequinha, coisa do capeta!", a velha empregada falava com medo e fazendo sinais de benção para expulsar mau olhado. "São dragões d'além da Catinga Danada, dum lugar onde nem o Divino Pai pisa! Um lugar chamado Vol'kor!"


"E por que estão aqui?", o menino questionou.


Antes que Nhá Rosa respondesse, ouviu-se barulho do andar superior: coisas caindo, madeira se partindo, vidro quebrando. A empregada puxou o menino e gesticulou para que entrasse embaixo da cama. Zequinha obedeceu, e, assim que ele se abrigou, o assoalho do andar superior desabou, cobrindo o quarto de entulho e deixando-o a céu aberto.


A cama protegera o garoto, mas Nhá Rosa ficou imobilizada sob os escombros, parcialmente exposta. Zequinha tentou se arrastar para fora e socorrê-la, mas já era tarde. Num piscar de olhos, Nhá Rosa foi puxada aos céus pela garra escamosa de um enorme dragão.


Desesperado, o menino permaneceu sob a cama e se encolheu, fechando os olhos e tapando os ouvidos. Ainda assim, ouvia a casa-grande ruindo, os disparos cada vez mais infrequentes de armas de fogo e os gritos apavorados de inocentes levados pelos monstros.


Mesmo quando o conflito se aquietou, as feras ainda teimaram em partir. Às vezes, o garoto até achava que os dragões falavam entre si, vociferando ordens e avisos num idioma gutural e sibilante. Horas se passaram antes que os monstros fossem embora.

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Embora os sons tivessem cessado horas antes, Zequinha só criou coragem para sair do esconderijo ao entardecer. Faminto, apavorado e cansado, o menino lutou para mover os destroços e alcançar a luz já fraquejante do sol poente.


Ele procurou por sobreviventes, mas todos foram levados. Seu pai, sua mãe, Jão Bentecastro, Nhá Rosa, Dita, Marianita, Bentinho, Quinzinho... Até os cavalos, o gado e os cães. Nada mais restara.


Naquele momento, o menino Zequinha se viu sozinho. E chorou.


Para muitos, um dia de tragédia.


Para os vilarejos e cidades da Cornália, que só saberiam do ocorrido algum tempo depois, um dia negro.


Mas para José Calabros, filho do Coronel, foi o dia em que eles vieram...

Muitos anos se passaram desde a data desgracenta,

mas ainda hoje vivemos numa era violenta.

Este mundo, meu amigo, é cheio de tragédias.

Raro é o sujeito que do destino toma as rédeas.

Esse caos é herança do Diabo Velho de eras atrás.

Mas a cada geração aparece algum cabra audaz,

e quando isso acontece, meu amigo, você pode apostar...

Que esse mundão todo está prestes a mudar!

 

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