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  • Tiago Moreira

Capítulo 2: Mandada pelo diabo

 

Exceto por um restinho de luz no oeste, a escuridão já tomava os céus, revelando as estrelas mais brilhantes e duas luas. A maior, Lágrima Prateada, presença constante nas noites, brilhava intensamente em sua fase cheia. A menor, apelidada Olho do Diabo por sua cor avermelhada, reaparecera após um longo período de ausência. Ao surgir, a pequena lua torna-se constante por uns três meses, cada noite avançando só um pouquinho no firmamento, para depois sumir de novo. Dizia-se que sua aparição era sinal de mudança iminente, para o bem ou para o mal.


Na Cornália, ao anoitecer, as ruas se enchem, reavivando o comércio. Na praça, o povo se reúne para comer, beber e dançar ao som da sanfona, da zabumba e do triângulo. Naquela noite, porém, Zé Calabros percorria as escuras ruelas próximas com o náufrago nos braços. Levou alguns minutos até discernir a silhueta da capela do Divino Pai, que estranhamente já estava com as portas fechadas.


Zé deu três fortes batidas na porta, repetindo-as após alguns instantes sem resposta. Quando já considerava bater novamente, ouviu o som da fechadura se destrancar, seguido pelo abrir das pesadas portas de madeira. A luz do interior inundou os olhos dele, ofuscando-o por um momento.


De lampião em mãos e em vestes formais brancas e vermelhas, as cores do sacerdócio de Padim, Madre Mirna sorriu ao reconhecer Calabros. Ambos eram órfãos, conviveram por anos em Vila Maria, quando ela fora noviça sob tutela de Madre Magnólia. Seis anos mais velha do que ele, sua decisão pelo sacerdócio a fez permanecer no orfanato até se tornar Madre aos vinte e um. Zé, por sua vez, partiu aos dezesseis, por iniciativa própria, mesmo não tendo atingido a idade máxima dos internos.


"José!", a bela clériga, de pele escura e cabelos cacheados, exclamou em alegria. Contudo, percebendo a pessoa desacordada nos braços do rapaz, encheu-se de compaixão e ordenou com seriedade: "Padim do céu! Entre, vamos!".


O salão principal da capela não era grande, havendo ali apenas oito bancos largos de madeira. Madre Mirna fechou a capela assim que Calabros adentrou o recinto, depois o conduziu até uma porta à direita do altar, que dava acesso aos aposentos dos fundos.


"Por que portas fechadas, Madre?", perguntou Calabros. "A casa de Padim sempre foi aberta a todos."


"Não respeitam mais nem o Divino Pai, José", ela respondeu, adentrando os aposentos posteriores. "Havia ladrões furtando oferendas e bêbados dormindo nos bancos, fazendo as necessidades aí nos cantos."


"Bando de cagão fela-d'égua", murmurou Zé, seguindo-a.


"Quem mais sofre com a desordem são os necessitados que batem à porta", Mirna desabafou, conduzindo-os à sala de jantar, que dava acesso a dez quartos laterais e à cozinha na outra ponta, a partir da qual se chegava a um quintal.


Os quartos eram destinados aos clérigos, bem como a doentes e feridos em tratamento, mas Madre Mirna era naqueles tempos a única sacerdotisa residente. Dois dos quartos estavam ocupados naquela noite, e deles ouvia-se tosse, gemidos e orações. Mirna indicou um terceiro para acolher o náufrago.


"Ora, mas o que é isso?", uma voz irritante e contrariada veio da cozinha, "Mas que cara de pau aparecer aqui!". De barba desgrenhada e pança saliente, Trambico Braz veio para a sala comendo caju e confrontando Zé Calabros: "Primeiro nega remédios aos necessitados, e depois vem procurar a casa do Pai?"


Imediatamente Zé sentiu uma forte vontade de socá-lo bem no meio da fuça. "O que esse traste tá fazendo aqui?", questionou com clara irritação.


"Não quero confusão aqui dentro!", Madre Mirna os interrompeu, voltando-se a Trambico Braz: "O José, além de ser bem-vindo nesta casa como qualquer outra pessoa, trouxe um necessitado para nós". Depois, explicou-se a Calabros: "Quanto ao Trambico, eu o acolhi há alguns dias. Ele tem me ajudado a fazer as compras, limpar os cômodos e cuidar dos desamparados".


Os dois se entreolhavam com clara animosidade. "Madre, por acaso foi você que mandou o Trambico comprar remédios lá na praia hoje cedo?", Zé questionou.


"Sim, fui eu que pedi a ele", a jovem clériga respondeu.


"Uma pena que os preços estavam tão altos", lamentou Trambico num tom irônico, "Só deu de trazer um tantico de coisa, tudo muito aquém do desejado. E esse Zé Calabros aí, ô cabra intrometido, nem me deixou pechinchar!".


Calabros quis confrontar Trambico ali mesmo, mas se conteve porque a saúde do náufrago em seus braços era mais importante do que qualquer querela. Preferiu, portanto, levar o jovem desacordado à cama, sendo seguido por Mirna. Trambico ficou na sala, resmungando desaforos.


"Ele está todo molhado! Coloque-o na cama, tire as roupas dele e cubra-o. Quando despertar, prepararei alguma comida quente", instruiu a clériga.


Calabros pousou suavemente o jovem na cama e retirou dele a sacola que tinha presa ao torso e o estranho livro lacrado. Entregando os objetos a Mirna, questionou: "Que roupas estranhas ele usa! Madre, você já viu coisa assim em algum lugar?".


Mirna avaliou as vestes, aproximando o lampião. O jovem usava uma calça larga, meias e uma espécie de roupão com mangas longas e largas amarrado por uma faixa à cintura, feitas de um tecido macio e reluzente de cor azul com detalhes brancos. "Isso parece seda", notou.


"Seda? O que é isso?", perguntou Zé.


"É um tecido caríssimo de uma terra distante. Já vi uma ou duas vezes."


"Terra distante? Não sabe qual?"


Madre Mirna balançou a cabeça negativamente. "Era um nome esquisito, não consigo lembrar. Madre Magnólia, que o Padim a tenha, com certeza saberia."



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Zé Calabros começou a despir o náufrago pelo roupão. Ali, sob a iluminação precária de velas e do luar que entrava pela janela, notou que o peito do rapaz estava envolto por ataduras de algodão, provavelmente encobrindo algum grave ferimento. Como as faixas estavam encharcadas, achou melhor trocá-las por novas.


Os olhos de Zé se arregalaram e o rosto se ruborizou ao perceber que as faixas não eram curativos. Não era à toa que achara aquele náufrago tão mirrado e frágil! Não se tratava de um rapaz, mas de uma moça, e Calabros encarava ali os pequenos seios dela, agora expostos.


Zé saiu do quarto imediatamente, rosto vermelho de tão encabulado, e chamou por Madre Mirna sem conseguir esconder a vergonha: "Madre? Preciso de sua ajuda aqui..."



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Zé Calabros retornou à sala, deixando a sacerdotisa cuidar da moça misteriosa. O lampião no centro da mesa iluminava os pertences da náufraga: o grosso livro e a sacola de couro ali deixados pela madre. Trambico Braz aparentemente voltara à cozinha, e Calabros agradeceu a Padim por não ter de encarar o imprestável naquele momento.


Sentando-se, Zé apoiou os braços na mesa e ficou a observar aquele estranho livro. Tinha capa dura revestida em couro, ornada com três pequenos cristais ovais e diversos símbolos intrincados. O tomo era mantido fechado por uma tira de couro com fivela e podia ser carregado com facilidade graças a uma alça ligada à lombada.


Zé puxou o livro para perto, intrigado por ele ter permanecido seco mesmo após mergulhar no mar. De sinais de água, havia apenas gotas na capa, deixadas pelo contato com a náufraga. Destravando cuidadosamente o lacre, abriu o tomo e começou a folheá-lo.


Não havia um título discernível, e a obra já começava num texto longo de alfabeto desconhecido. Passando as páginas, viu desenhos diversos: símbolos grandes e cheios de minúcias, posturas corporais e sequências gestuais, imagens do sol, das luas e estrelas, representações de objetos caindo, se atraindo ou se quebrando, tudo acompanhado de legendas incompreensíveis. E nada de borrões, manchas, rasgos ou qualquer outro sinal de que as páginas tivessem se molhado.


Naquele momento, Madre Mirna saiu do quarto, trazendo consigo as roupas úmidas da náufraga. "O que é isso, José?", perguntou curiosa.


"Um livro pra lá de bizonho que tava com ela. Parece coisa do diabo, não molhou nadinha! E essas letrinhas aqui, você já viu isso em algum lugar?"


A sacerdotisa se aproximou para avaliar o texto. "Não. Nunca vi nada igual! Mas se você acha que é coisa do capeta, é bom não ficar mexendo. Você não quer ficar maculado, quer?"


"Arre égua, Padim queira que não!", respondeu Zé, fechando o livro, afivelando-o e afastando-o de si.


Madre Mirna então reparou na sacola sobre a mesa. "Dê uma olhada no que tem dentro da sacola, José. Deve estar tudo molhado lá dentro, separe o que der de secar e o que foi estragado pelo mar, que vou lá no quintal estender essas roupas dela."


Zé obedeceu, puxando a sacola e desamarrando o cordão que a mantinha fechada. Madre Mirna seguiu ao quintal, passando pela cozinha, no exato momento em que Trambico Braz voltava no sentido inverso. O sujeito parou a sacerdotisa para avisar que já estava saindo e que voltaria na manhã seguinte, mas Zé estava tão distraído que nem o percebeu.


De dentro da sacola, Calabros retirou rações de viagem estragadas, um odre, possivelmente contaminado pelo mar, um bloco de pergaminhos encharcados e outros pequenos utensílios. Trambico atravessara a sala e destrancava a porta para a capela quando Zé retirou algo pesado e pôs sobre a mesa, causando o tilintar de moedas. Trambico parou de imediato e ficou a observar, curioso.


O objeto era um conjunto de quatro algibeiras unidas por uma tira de couro. Zé abriu a primeira delas e a esvaziou, fazendo cair umas vinte e poucas moedas de cobre. Juntou-as numa pilha para secarem, e então fez o mesmo com a segunda algibeira, desta vez tirando pouco mais de quinze moedas de prata.


Trambico Braz se aproximou: "Isso aí é dinheiro para viagem do rapaz, é?".


Calabros o recebeu com um olhar raivoso. "Não te interessa, traste! Tira o olho! Isso aqui é da moça do mar, que a gente achava ser rapaz. Só estou tirando pra secar!"


"Sei, sei", respondeu o incrédulo Trambico. "E não vai ficar nem um pouquinho com você? Eu vou é ficar de olho!"


"Não fala besteira! Claro que não vou pegar nada para mim!", respondeu Calabros, já esvaziando a terceira algibeira. De lá caíram umas trinta moedas de ouro.


"Homem do céu, olha só isso! Essa moça deve de ser muito rica!", Trambico Braz arregalou os olhos, já se aproximando para pegar uma moeda.


Zé agarrou o pulso do sujeito e não o deixou tocar em nada. "Se afasta, que não confio em traste!", ameaçou.


"Deixa disso, ô cabra desconfiado!", irritou-se Trambico, recolhendo o braço. "Você salvou a vida dela, e ela tem dinheiro para dar e vender! Olha só quanto dobrão!"


Zé Calabros protestou: "Quando acordar, ela decide se dá ou não alguma coisa! Sabe-se lá de onde a moça vem ou pra onde vai! Pode precisar do dinheiro pra coisa séria!".


Trambico retrucou: "Homem, larga de ser bobo! Quem tem tanto dinheiro sempre tem um pouco pra dar pros outros!".


Calabros preferiu ignorá-lo para não partir pra violência. Removeu então o conteúdo da quarta e última algibeira, da qual caíram umas doze moedas estranhas, bem maiores do que o padrão, de um metal prateado que Zé não reconhecia e borda folheada a ouro. "Que diabos é essa moeda?", questionou, pegando uma e analisando de perto, intrigado com a cunhagem, que não era corna, dragonina ou kalimnoriana.


Trambico Braz não conseguiu se conter: "Meu Padim! Olha para isso! Nunca tinha visto, só conhecia de ouvir falar! Isso aí é moeda que só circula nessas nações grandes! Zé do céu, me escuta, isso aí... isso aí é drakkar! Só rico e realeza tem isso nas mãos, é pra viajar levando muito dinheiro, muito mesmo! Cada moeda dessas vale cem dobrões! Cem! Uma dessas é quase o mesmo que trabalhar uns quatro anos, sem tirar um só dia de descanso!"


Zé juntou as estranhas moedas numa pilha e se voltou a Trambico, não gostando nem um pouco do olhar dele. "Melhor deixar bem longe de você, então! E você já não tava de saída, mesmo? Se escafeda daqui!"


Trambico Braz insistiu: "Homem, pensa bem! Ela não precisa de tanto dinheiro! Pega uma moedinha dessas, umazinha só! A moça nem vai notar, mas dá de mudar a nossa vida! Dá de ajudar muita gente! Isso aí é sorte grande, é Padim que tá nos dando!"


Zé se levantou tão rápido que Trambico nem reagiu antes de ser prensado contra a parede. Com o cotovelo no pescoço do imprestável, Calabros aproximou o rosto, encarando-o nos olhos, e falou baixo, pausado e muito, muito irado: "O que é da moça, só ela decide como usar, seu traste dos infernos! Cabra safado que nem você, que pega dinheiro dos remédios da capela pra comprar bebida, não vai por a mão nem num cento!"


"Pensa bem, Zé!", Trambico murmurou com dificuldade, "Você aí pobre e ela com essa riqueza toda, isso é justo?".


"Se é justo não sei, mas menos justo ainda é roubar! Aprenda uma coisa, estrupício: quando eu decido, tá decidido, e já falei que esse dinheiro é dela e de mais ninguém! Agora capa o gato daqui, antes que eu lhe sente a mão na fuça, fela-d'égua desgramento!"


Calabros se afastou um pouco, dando espaço para Trambico sair na direção da porta. O imprestável não pensou duas vezes: recuperando o fôlego, saiu dali a passos apressados, tossindo e resmungando insolências.


"O que aconteceu?", perguntou Madre Mirna, que voltava naquele momento.


"Nada, tava só tirando o lixo da sala", Zé respondeu zangado, sentando-se de novo à mesa e voltando a retirar coisas da sacola: caneta-tinteiro, um vidrinho de tinta lacrado, barra de sabão... Ali no meio, outro objeto chamou sua atenção: uma bela adaga de cabo ornado, protegida numa bainha de madeira que cobria-lhe a lâmina.


Madre Mirna insistiu sorrindo: "José Calabros, você continua o mesmo! O que aconteceu aqui na sala, me conte!".



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Trambico Braz entrou no boteco vociferando impropérios. Lá dentro estava a meia dúzia de sempre, só um ou outro rosto novo. Aproximou-se do balcão, onde o velho Seu Tró secava uma caneca com uma toalhinha.


"Ôxente, Trambico, que cara amarrada é essa?", perguntou Seu Tró. "Mais parece criança birrenta! O que te deixou tão contrariado?"


"Alguém pôs o dedo no seu fiofó, foi?", algum dos bêbados provocou. Todos gargalharam.


Alvo do escárnio, Trambico Braz ficou ainda mais irritado e jogou um cento no balcão. "Me dá um copo de cachaça pra me acalmar, que já estou emputecido com um cabra. Dia desses, dou-lhe uma surra daquelas!"


"Vixe! E que cabra da moléstia é esse, Trambico?", Seu Tró questionou.


"É aquele desgramado do Zé Calabros!", respondeu.


E o pessoal gargalhou com entusiasmo. "Mas você vai arrumar encrenca logo com o Zé Calabros?", um disse. "Endoidou de vez?", outro perguntou.


Alguém ali no meio resolveu se intrometer: "Dia desses, Zé Calabros moeu na porrada três grandalhões que estavam quebrando tudo lá na praça!"


E Seu Tró: "Falam por aí que o Zé atravessou a Catinga Danada e matou um boitatá quando era menino! Não se mete com ele, que quem leva coça é você!"


Trambico Braz se calou um pouco, pensou por um instante e desabafou: "Pois o sujeito encrenca comigo duas vezes num só dia! Logo comigo! Primeiro foi na praia, eu só queria ajudar o pessoal, tava tentando convencer o velho Jacinto a vender barato pro povão, e o Zé Calabros aparece ameaçando todo mundo que queria pechinchar!"


"Só querendo ajudar o povão, né? Seu coração é de ouro, Trambico!", alguém caçoou.


"É sério, caramba! Esse Zé Calabros é um grande lambe-botas de coronel. Capacho dos ricos! Defende quem tem a bufunfa pra ganhar um por fora! Agora há pouco, ele salvou uma menina lá na praia, moça estrangeira, sabe-se lá como chegou aqui. Levou ela desmaiada pra capela do Padim, onde eu tava ajudando os enfermos. A menina tá cheia da grana, gente, e o Zé Calabros não quis dividir com ninguém, queria tudo pra ele!"


"Poxa", Seu Tró interrompeu, "Mas a menina nem acordou ainda, e você queria pegar o dinheiro dela?"


"Mas não é dinheiro de trocado não, Seu Tró! Eu não pego nada de quem passa dificuldade! Ela tinha muito ouro mesmo, mais do que eu já vi em toda a minha vida! Era tanto, mas tanto dinheiro, que dava pra pegar um tanto bom e a moça não ia nem sentir falta!"


"Era tanto assim mesmo?", alguém perguntou.


"Se era! Tinha até aqueles moedões estrangeiros, que a gente só ouve falar! Ela carregava uma vida inteira de trabalho duro no bolso! E olha só: quem tem uma quantia dessas pra viajar, tem ainda mais em casa! Não ia fazer falta!"


Ali num canto escuro, tinha um sujeito parrudo que não era daquelas bandas, de bigode grosso e cabelo preto, vestindo chapéu de palha e um poncho que cobria o torso e braços. Até então calado, só ouvindo a conversa, ele se levantou e caminhou até Trambico Braz, jogando um vintém para Seu Tró ao chegar ao balcão. "Traz uma garrafa de goró para eu e meu amigo batermos um papo", disse, depois se voltando a Trambico: "Conta essa história direitinho pra mim, que a bebida hoje é por minha conta!".



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"Então, Trambico usou parte do dinheiro para comprar bebida?", Madre Mirna perguntou espantada, depois transparecendo desapontamento nos olhos. "Ah, José... é difícil confiar nas pessoas hoje em dia... Terei uma conversa séria caso ele apareça de novo por aqui!"


"Nem sei porque confiar num traste desses", murmurou Zé Calabros.


"Eu preciso de ajuda, José! Sobraram tão poucos sacerdotes do Divino Pai, que hoje temos essas capelas vazias... Na época do Tibúrcio Mendes, nós éramos perseguidos, exilados e mortos pra não ajudar os outros coronéis. Agora, pouca gente oferece auxílio, mas muitos continuam precisando de nós."


"Mas aceitar ajuda logo de um aproveitador como aquele?"


"Você se lembra do que Madre Magnólia dizia, José? Não existe pessoa nem totalmente boa, nem totalmente má. Trambico, apesar dos defeitos, sempre defendeu os pobres e ajudou os outros. E a gente sempre torce para que as pessoas superem seus defeitos."


"Meu pai falava que todo mundo escolhe seu caminho, mas dificilmente volta atrás depois", Zé argumentou. "E esse Trambico, Madre, nunca quis ajudar ninguém, só ele mesmo. Defende os pobres porque é pobre, pra ganhar algo com isso. Se fosse rico e não dependesse de ninguém, ia estar se lixando pros outros. Aprendi com meu pai, que era filho de homem severo e mulher trabalhadora humilde, e confirmei andando por toda parte: ser pobre não é virtude, e ser rico não é pecado!"


Madre Mirna suspirou, mas depois sorriu. Em todos os anos de convívio, raramente ouvia Zé falar algo sobre a família que perdera. "Eu ouvi muitas histórias sobre seu pai, José, ele tinha uma fama muito boa. Não era severo, tratava os empregados com justiça e recompensava as virtudes das pessoas."


"Severo ele era sim, o que ele não era é injusto! E mesmo com tanta gente gostando dele, até hoje o xingam porque era coronel", desabafou Calabros.


"São questões de percepção, José. O herói de um homem pode ser o diabo de outro!", a jovem sacerdotisa lembrou.


"Disso eu sei. Não tem ninguém nesse mundo que conseguiu agradar a todos."


Houve um instante de silêncio. Madre Mirna aproveitou e fez um sinal para que Zé esperasse, entrando num dos quartos e voltando com um lençol para cobri-lo, pois ele ainda estava descalço e sem camisa.


Zé recusou. "Careço de coberta não, Madre. O tempo tá bom, nem quente nem frio, e só vou terminar de separar essas coisas da moça pra sair, que já incomodei bastante."


"Ora, José, você não incomoda! Fique aqui pelo menos esta noite, para dormir numa cama de verdade!"


"Tem necessidade disso não!"


"Eu insisto! Não há sentido em você dormir na rua hoje! Essa é a recompensa do Divino Pai pelos seus bons atos de hoje!"


"Tá bem, tá bem! Se é o que Padim quer...", Zé Calabros cedeu, batendo diante do peito um punho fechado sobre a palma aberta da outra mão, "Tá decidido, então!"



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Zé Calabros saiu para buscar as coisas que deixara para trás, as sandálias, o embornal com seus pertences e a camisa, mas prometera voltar ainda naquela noite. Nisso, Madre Mirna aproveitou para ver como estavam os abrigados da casa de Padim, percorrendo os três quartos ocupados.


Primeiro foi ao cômodo onde estava Dona Firmina, senhora idosa ali acompanhada de sua filha mais nova, Clara. Ali há três dias, a velha senhora tossia muito e não respondia aos remédios nem às orações, o que indicava que talvez sua hora se aproximasse. Madre Mirna lamentava a incapacidade de curá-la.


O segundo abrigado era o Senhor Fatrício, um camponês que fora roubado e espancado por vagabundos ao visitar a cidade, quebrando o braço e sofrendo escoriações no rosto. Ele chegara à casa do Padim naquela tarde, entre os muitos enfermos e feridos que procuravam diariamente a capela. Madre Mirna foi capaz de curar ou remediar a quase todos, mas, já exaurida, teve de abrigar Fatrício para um tratamento prolongado. O caso dele não era tão grave, e felizmente respondia bem aos remédios. No dia seguinte, tendo recuperado as forças, Mirna evocaria uma cura para o braço e o liberaria, embora ainda levasse uma semana antes que fosse recomendado a ele voltar ao trabalho.


Essa é a realidade dos sacerdotes de Padim. Através da fé, são capazes de pequenos milagres, mas isso consome suas forças. O toque e oração de Madre Mirna fechavam pequenos ferimentos ou aceleravam a cura, mas sacerdotes mais experientes, como Magnólia, realizavam feitos impressionantes. Havia histórias até mesmo de antigos milagreiros capazes de ressuscitar um morto, embora ninguém tão abençoado tivesse surgido nas gerações recentes.


Infelizmente, a demanda por tais bênçãos sempre fora muito grande, o que exigia parcimônia em seu uso. É dito que um sacerdote, em sua ânsia de servir aos necessitados, pode esgotar sua própria vida e falecer. Por isso, tanto nos casos menos graves como nos além de sua capacidade, Madre Mirna administrava tratamentos mais convencionais, como elixires, remédios ou ataduras preparadas por alquimistas.


Após verificar a condição de Fatrício, a sacerdotisa visitou o terceiro quarto, onde estava a jovem náufraga. Aproximou o lampião dela, que continuava desacordada, mas felizmente respirando normalmente. A jovem resgatada parecia tão pequena e frágil, e as circunstâncias de sua chegada faziam Mirna pensar em Zé Calabros.


A Madre reviveu as memórias da chegada dele no orfanato de Vila Maria. E isso aconteceu não uma, mas duas vezes.



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Treze Anos Atrás...


"Ô de casa!", a voz chamou após um breve bater de palmas. As Madres Magnólia e Hildinha foram à porta receber os recém-chegados. Irmã Mirna, 14 anos, ficou com os órfãos, que espiavam curiosamente pela janela.


Ali à entrada da propriedade estavam mais de uma dezena de jagunços montados a cavalo, todos armados com facões e garruchas. Dois homens tinham descido de suas montarias e se aproximavam da casa a passos lentos.


O da frente, em trajes elegantes de linho e usando chapéu de vaqueiro com enormes chifres, tinha feições e nome conhecidos por toda a Cornália: Coronel Joaquim da Silva, o "Silvério", senhor de São Vatapá do Norte, renomado por seu bigode avantajado, olhar frio e atitude severa tanto com empregados como inimigos. "Madres!", saudou ao vê-las, com a voz sempre séria, quase intimidadora.


"Coronel Silvério", cumprimentou Magnólia, "a que devemos tão importante visita?".


Silvério apontou para o segundo homem, seu mais cruel e fiel jagunço, o matador conhecido como Mão Santa, que vinha logo atrás puxando pelo braço um raivoso menino de pele bronze e cabelos crespos. "Viemos pra modo de trazer esse moleque pras madres cuidarem. José! Venha cá conhecer Madre Magnólia!"


"Não quero ficar aqui!", protestou o garoto de olhar contrariado, tentando escapar do jagunço. "Me larga! Aqui não fico! Você não manda em mim!"


Silvério deu um tapa na cara do menino. "Cala a boca, menino, que estou é lhe fazendo caridade! Se fosse mais obediente, eu mesmo te criava, seu custoso, mas como gosta de ser bicho do mato, vai morar aqui com as sacerdotisas de Padim!"


"Calma, Coronel!", Madre Magnólia pediu, indo até o menino e afastando-o de Mão Santa.


O jagunço a fitou com aqueles olhos de matador, e aproveitou a mão agora livre para ajeitar o chapéu.


A sacerdotisa puxou o garoto para perto da casa, a contragosto dele, então abaixou-se e fitou-o nos olhos: "Calma, menino, aqui você se sentirá bem, eu garanto! Se não gostar depois de um mês, nós te deixamos partir para onde quiser, pode ser? Qual é seu nome?".


Foi Silvério quem respondeu: "Esse aí é o José, filho do Coronel Calabros, de Itapopó da Mata".


"Itapopó da Mata?", a sacerdotisa ficou surpresa. "Ele é um dos sobreviventes da tragédia?"


"É sim", confirmou o coronel. "Ano passado, assim que soubemos do ocorrido, fomos resgatar quem ainda estivesse vivo. Vi a devastação com esses olhos que a terra há de comer: Vatapá do Sul e Itapopó da Mata foram arrasadas pelos volkoritas, e a tragédia não parou aí não! Depois ainda apareceram cangaceiros pra saquear o que restou, matando todo mundo que ainda estava em pé! Achamos esse aí vivendo igual bicho, comendo carniça e bebendo suco de cacto. Só a vontade de Padim deixou esse moleque sair vivo!"


"Céus!", Madre Magnólia exclamou, fitando compadecidamente o menino, "Você deve ter passado por momentos terríveis".


O garoto de oito anos devolveu um olhar silencioso e raivoso. Magnólia compreendia aquela reação, sabendo que a força e a raiva do menino escondiam uma alma calejada de sofrimento.


"Você acha que a praga dos dragões pode estar voltando, coronel?", Magnólia perguntou.


Silvério respondeu: "Difícil saber, mas Padim queira que não! Só aconteceu esse ataque, e já passou quase um ano! Mas com isso preocupo eu, não se inquiete! Cuida bem desse moleque, Madre, que o pai dele era homem honrado e justo, e meu amigo! Eu vou proteger as terras dos Calabros, e se um dia ele quiser de volta, só vai precisar pedir".


"Cuidarei dele com todo o carinho, coronel! Não tenha dúvidas disso!"


Silvério agradeceu e voltou ao cavalo. Já Mão Santa jogou aos pés do menino uma sacola grande, com roupas e dinheiro para o orfanato.


"Padim o abençoe por seu gesto, Coronel Silvério", agradeceu a clériga.


"E mais uma coisa", falou Silvério, subindo no corcel. "Pelo visto, vocês vão ter mais criança pra cuidar. O Coronel Tibúrcio Mendes, lá de Santa Rita, atacou Curva do Vento! O traste enlouqueceu, tá se chamando de 'general' agora, quer fazer guerra. Cedo ou tarde, vai partir pra cima de Bota do Judas e São Vatapá do Norte."


"Ai, Padim", murmuraram as madres.


"Pois é, o desgraçado tá matando até os sacerdotes, pra modo de não curarem os inimigos dele!"


"Corremos perigo aqui?", Madre Magnólia questionou.


"Não creio, aqui não tem ninguém pra desafiá-lo. Mas não saiam de Vila Maria, madre, e nem tomem lado na luta", ele respondeu, depois se despediu: "Té mais ver, e do que precisarem, estarei à disposição".


Magnólia e Hildinha agradeceram e, tão logo Coronel Silvério partiu, levaram o menino para dentro.



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Alguns dias tinham se passado, e o menino José Calabros, ali mais conhecido como Zeca, permanecia afastado das demais crianças. Observava muito, falava pouco e frequentemente fugia das aulas. Naquele fim de tarde, as crianças brincavam na frente da casa, e Irmã Mirna caminhava pela horta quando viu o garoto emburrado, recolhido sob a sombra do pomar.


"José?", chamou Mirna, aproximando-se dele. O menino não respondeu, permaneceu ali, olhando o horizonte. Mirna se sentou ao seu lado, tocando-lhe o ombro. "Por que você não vai brincar com as outras crianças?"


O menino permaneceu calado a princípio, mas, ao notar que Mirna não sairia dali sem uma resposta, desabafou: "Elas não gostam de mim porque sou filho de coronel".


"Isso não é motivo! Você está aqui há pouco tempo, elas vão se acostumar com você", disse Irmã Mirna. "Faça um esforço! Aguente um pouco, e logo vão te aceitar."


"Meu pai falava que todos tinham medo dos coronéis. Dizia que não importava quanta coisa boa ele fizesse, ainda assim iam odiá-lo. Se não tomasse cuidado, se mostrasse fraqueza, podiam até nos matar. Mas lá eu brincava com as crianças da vila! Por que aqui é diferente?"


"Os coronéis mandam na Cornália há muito, muito tempo, José. Alguns poucos tratam bem as pessoas, deixam o povo ser livre, mas a maioria ainda acha que o povo é propriedade. Tem muitos que mandam até matar os desafetos. Quando as pessoas pensam em coronel, lembram de gente como Tibúrcio Mendes, não no seu pai."


"Eu queria ir embora daqui", desabafou o menino.


"E por que não vai?"


"Porque gosto de você e das madres. E não tenho pra onde ir. Em todo lugar, vou ser filho de coronel, mesmo não tendo mais pai."


Irmã Mirna notou uma pequena lágrima escapar dos olhos do menino, que se esforçava em parecer raivoso, fechado, forte. "Não fique assim! Você ainda vai encontrar seu lugar nesse mundo, José, pode acreditar!". Foi então que percebeu a fita branca presa ao braço direito dele. "Mas o que é isso? Você fez uma promessa?"


"Sim, eu fiz, quando ainda estava com o Coronel Silvério", ele respondeu, fechando o punho e erguendo o braço para exibir a fita. Esforçou-se em conter algumas lágrimas que insistiam em escapar-lhe dos olhos. O que quer que aquela fita amarrava, doía muito na alma do menino. "Fiz uma promessa a Padim. E um dia vou-me embora pra cumprir."



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Quatro anos depois; Nove anos atrás...


"É o Zeca!", Nina veio gritando dos fundos do rancho, "Tá vindo lá da caatinga!".


Zeca desaparecera há mais de um mês, no dia em que os dois enormes viajantes passaram por Vila Maria. Por muitos dias, todos procuraram desesperadamente pelo menino. As esperanças já se esgotavam, embora Madre Magnólia ainda rezasse todas as noites, pedindo por sua vida e alma.


A notícia do tão aguardado retorno animou a todos, portanto, crianças e sacerdotisas correram para os fundos da propriedade para receber Zeca de braços abertos. A alegria e o alívio, contudo, deram lugar a espanto e horror ao perceberem o estado do menino.


Zeca cambaleava a passos lentos, mais morto do que vivo. Estava esturricado pelo sol, emaciado pela fome e coberto por poeira, feridas e sangue seco. Seus ombros pesavam e as mãos estavam vermelhas de tão machucadas. Os cabelos crescidos caíam-lhe ao rosto, mas apesar da exaustão, o menino tinha a expressão determinada, zangada, ardente, e os olhos... os olhos em nada pareciam com os de um moribundo.


Madre Magnólia saltou a cerca de imediato, indo de encontro ao menino. Hildinha foi buscar água e medicamentos, mas mandou Mirna ajudar Magnólia. Algumas das crianças seguiram Mirna, outras foram com Hildinha, e o resto permaneceu ali, junto à cerca, ansiosas e preocupadas.


Magnólia se ajoelhou diante de Zeca, segurando-o pelos braços, e naquele momento as pernas do menino fraquejaram, forçando-o a se apoiar na venerada sacerdotisa. "José! O que aconteceu, José? Vem comigo! A gente vai cuidar de você! Vem!"


"Madre...", o menino balbuciou, resistindo aos apelos dela e exibindo o braço direito com a fita branca ali amarrada. "Quero outra... me traz mais uma fita...", implorava, buscando conforto no ombro da clériga. Aos prantos, insistiu como se a própria vida não importasse: "Uma fita... pra outra promessa...". Repetiu o pedido incontáveis vezes, silenciando-se apenas ao perder a consciência por exaustão. Irmã Mirna presenciou atônita àquela cena.


O menino que fora para o sertão voltava mudado. Aquele Zeca não era mais uma criança, já se tornara Zé Calabros.



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O Presente...


A fogueira ardia na clareira oculta entre os cajueiros, oiticicas e aroeiras. As chamas projetavam longas e tremulantes sombras dos homens ali reunidos: três em pé montando guarda, dois deitados em descanso e quatro sentados ao fogo, conversando e assando carne. Todos estavam armados: a maioria com facões, sabres e garruchas, alguns com revólveres, e um ou outro portando espingarda.


"Silêncio, cambada! Psiu!", disse um dos guardas, puxando a garrucha com uma mão e o facão com a outra. Os outros se calaram, preparando suas armas.


Ao que então veio a voz da mata: "Carece de cavar cova não, que cabra cá é irmão". Era a senha do bando.


Imediatamente todos relaxaram. Entrou em cena então o recém-chegado, o homem de bigode grande e chapéu de vaqueiro, vestindo um poncho que cobria seu torso e escondia duas garruchas prontas para uso.


"Mas já voltou, Podreira?", perguntou o narigudo varapau de cavanhaque pontiagudo, ali diante do fogo, revólver na mão.


"Pois é, Mané!", Podreira respondeu ao líder, Mané do Cangaço, criminoso procurado em toda a Cornália, capanga de Severino Barriga D'Água. "Cê me mandou espiar a cidade, e te trouxe notícia da boa. Tem uma menina do estrangeiro que Anaren'mar cuspiu na praia, sem parente nem conhecido por essas bandas, mas com muita riqueza, pronta pra gente pegar!"


"Uma menina, é? De quanto dinheiro cê tá falando?", Mané do Cangaço questionou, repetindo a velha mania: abriu o tambor do revólver, girou-o, contou as balas e fechou de novo.


"Se quem me contou não mentiu nem exagerou, é dinheiro pra dar inveja pra coronel! Coisa que trabalhador demora muitos anos pra ajuntar."


"Vixe lasqueira! Severino vai ficar feliz demais da conta!", riu Mané do Cangaço, o sorriso desdentado escancarando na face famélica. "Vai ocê e o Cagado e pega mais uns quatro, pra modo de ela não escapar e ninguém interferir. Dá um jeito de pegar esse dinheiro!"


"E a menina, Mané? Pego o dinheiro e faço o que com ela?"


"Aí a decisão é tua! Se quiser, pode passar fogo, que ninguém vai sentir falta mesmo!"



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Imagens passavam rapidamente pela mente inquieta. Um navio atravessando o mar revoltoso. Trovões e relâmpagos. Homens de preto. Perseguição. Luta. A queda no mar. Agarrando-se à própria vida. Levada pelas ondas para o coração da tempestade negra. Desespero. Então uma mão agarrou o braço dela.


Os olhos da jovem se abriram subitamente. O ar estava abafado e quente, e raios de sol atravessavam as frestas da janela anunciando um novo dia. Notou-se nua e puxou o lençol para se cobrir, em seguida perscrutando os arredores. Estava sozinha num quarto com paredes de alvenaria, com uma cama, uma janela, uma porta e nada mais.


A jovem se levantou, enrolando-se no lençol, e a passos lentos, um tanto cambaleante, foi até a porta. Antes de arriscar abri-la, encostou o ouvido na madeira para escutar o que ocorria do outro lado. Nenhum som discernível. Moveu a maçaneta sutilmente, respirando aliviada ao perceber que não estava trancada.


Abrindo a porta cuidadosamente, a moça notou o salão seguinte, largo, comprido, com uma grande mesa retangular central. Viu seus pertences ali, dispostos de forma organizada, e se aproximou, pegando o livro e apertando-o contra o peito. Sentiu novo alívio ao notá-lo intacto.


"Padim do céu, finalmente você acordou!", surpreendeu-a a voz masculina grosseira, numa língua que lembrava o idioma comercial, mas com um sotaque carregado e algumas palavras estranhas.


Surpreendida, a moça saltou para trás assustada, deixando o livro escapar e cair ao chão. Por pouco não deixara o lençol se abrir e cair também. Envergonhada, a moça recuou um pouco e encarou o rapaz que entrava pela cozinha. Era alto e magricela, mas musculoso, de pele escurecida, barba por fazer e cabelos crespos. Vestia uma calça velha e camisa surrada de mangas curtas, que mantinha aberta, como se fosse um colete, exibindo o peito e a barriga.


Ele então se virou para trás, na direção do cômodo de onde veio, e gritou: "Ô, Madre! Corre aqui que a moça acordou!"


"Quem é você e onde estou?", ela perguntou em sua língua natal, mas o rapaz a olhou sem entender. Nessa hora, surgiu uma mulher bonita, de pele escura e cabelos com longos cachos, vestida em branco e vermelho e trazendo uma muda de roupas consigo.


A recém-chegada sorriu ao ver a jovem e se aproximou. "Calma, você deve estar confusa! Eu sou Madre Mirna, sacerdotisa do Divino Pai. Vista isso!", ela disse, exibindo o vestido de chita que tinha nas mãos e entregando-o à moça. Madre Mirna apontou então para o quarto, e a jovem entrou para se vestir.



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A moça demorou um pouco no quarto, deixando Zé Calabros e Madre Mirna ansiosos por conhecê-la. Quando a porta finalmente se abriu, a garota deu um único passo tímido para fora do quarto, baixando a cabeça e olhando para Mirna e Calabros apenas com rápidas olhadelas de canto de olho. As mãos dela estavam unidas e se apertando tensas, e a face mostrava desconforto, talvez até medo.


Era baixinha e magra, de cabelos negros lisos batendo-lhe no ombro e pele tão branca que parecia nunca ter saído ao sol. O rosto dela era arredondado e muito bonito, com lábios delicados e olhos verdes ligeiramente puxados. Trajava o vestidinho de chita, o que a fazia parecer uma menininha.


"Wat'shi wa...", ela disse, interrompendo-se ao notar que falava em sua língua natal. Então, corrigindo-se, falou na língua comercial, com um sotaque carregado: "Eu ser... sou... Eu sou Mara'iza... da família Atsumi, da terra de Gaz'zira. Sou grata à sua gentileza", em seguida curvando-se de forma respeitosa. Sua pronúncia era meio engraçada, confundindo os sons de "erres" e "eles", tropeçando nos encontros consonantais, e tratando a maioria das palavras como oxítonas.


"Saudações. Já me apresentei antes, mas sou Madre Mirna, sacerdotisa do Divino Pai. E este é seu salvador, José Calabros."


"E aí, Malaísa? Como você foi parar no mar?", perguntou Zé Calabros.


A moça se abraçou, tentando encobrir os ombros expostos, então olhou para Calabros com certa irritação. "Mara'iza", corrigiu. "Meu nome é Mara'iza!"


"Pois é! Malaísa! Entendi! Mas como você foi parar ali no mar?"


Contrariada, a moça ignorou Zé e se voltou à Madre. "Eu sou de família sam'rai... família nobre. Estas roupas são indignas! Peço, com muito respeito, roupas mais apropriadas."


"Ah, perdão!", respondeu Madre Mirna, "Pus suas roupas para secar, mas elas estavam tão estragadas que preferi te dar um vestido típico. Espere aqui, vou buscar algo que pode te deixar mais à vontade". Em seguida, a sacerdotisa se retirou ao seu quarto.


Zé Calabros fitava Mara'iza, mas a menina evitava devolver-lhe o olhar, virando o rosto na direção do quarto de Mirna, ansiosamente esperando-a voltar. "Aquelas suas roupas pareciam de homem", riu Calabros para descontrair, "até achei que você fosse um rapazote!".


"Eram roupas de homem, seu idiota!", a moça retrucou, sem olhá-lo diretamente.


Zé não gostou nada da reação da moça. "E por que diabos você tava usando roupa de homem?"


"Não interessa. Alguém como você não compreenderia!", ela devolveu um olhar indireto. "E pare de me encarar! Um homem de respeito, mesmo plebeu, desviaria os olhos!"


"Alguém como eu? Plebeu? Era o que me faltava!", Calabros elevou a voz, "Tá achando que é princesa, moça? Pra cima de mim não! E encaro sim, ó!". Zé então apontou os dedos indicador e médio para os olhos, arregalando-os em clara provocação, e depois voltou os mesmos dedos na direção dela. Repetiu o ato mais duas vezes.


"Mas quanta impudência!", Mara'iza retrucou de testa franzida, finalmente encarando-o de volta, e apontou o dedo para ele, levando a outra mão ao peito para cobrir o sutil decote do vestido. "Não sei que terra de selvagens é essa, mas em minha terra, os sam'rai cortariam sua cabeça por tal desrespeito, seu ogro iletrado!"


Zé Calabros fechou a cara. "Que diabo de desrespeito o quê! Pode mandar teus cabras pra cima de mim, que despacho todos na pancada! Aqui ou lá, faço as coisas como eu quiser! E o que tem se eu olhar? Você tá vestida! E até pelada já te vi! Achamos que você era homem, então quem você acha que tirou sua roupa molhada?"


A revelação estarreceu a moça, que arregalou os olhos e ficou vermelha de vergonha. "Seu porco nojento!", disse, acertando-o um tapa na cara. O tabefe mais doeu na mão dela do que no rosto de Zé, que mal se mexeu.


"Eu salvei sua vida, menina! Mostra alguma gratidão!"


"Isso não dá o direito de me desrespeitar dessa forma, insolente! Nem quero imaginar o que mais um ogro sem honra como você fez enquanto eu estava desacordada!"


"Ai, Padim", Zé perdeu a paciência, "me dá forças para não socar essa menina! Essa aí não foi salva por Anaren, não! Foi mandada pelo diabo mesmo!"


Mirna voltava naquele instante, trazendo consigo um colete de renda branco com mangas longas, para a moça pôr sobre o vestido. Ao ver os ânimos acirrados, tentou interromper a discussão: "O que está acontecendo aqui? José, contenha-se!"


"Eu, Madre?", Zé questionou, apontando para si. "Ah, quer saber? A moça tá salva, não quero nada dela! Já vi que tá cheia de vida mesmo, e não suporto esse povo pomposo que tem rei na barriga! Ela que se vire! Eu vou embora, procurar o que fazer!"


Madre Mirna tentou acalmá-lo, mas Zé saiu rapidamente, sem nem se despedir. A sacerdotisa não o seguiu, contendo-se e voltando-se para a moça. "O que aconteceu aqui?"


Mara'iza, de testa franzida, braços cruzados e cara fechada, se absteve de responder.


Mirna suspirou, entregando a ela o colete.


A moça ficou bem mais à vontade ao cobrir os ombros e braços e sem a presença de Zé Calabros. Ainda assim, ela constantemente punha a mão sobre o peito para tapar o modesto decote, mesmo este sendo nada revelador. Acalmando-se, Mara'iza baixou a cabeça e murmurou: "Peço perdão pela intempérie. Eu me exaltei".


"Você deve estar se sentindo exposta, vulnerável e confusa", Madre Mirna avaliou, "Sente-se, trarei uma bebida quente e algo para comer, depois conversaremos com calma".


 
A seguir: Está decidido

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