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  • Tiago Moreira

Capítulo 1: Vazios por dentro


 

"O barco chegou! O barco chegou!", gritavam as crianças vindas da praia. Corriam serelepes pela avenida do comércio, trazendo a boa nova que empolgava comerciantes e fregueses naquela manhã ensolarada.


"O barco chegou! O barco chegou!", repetiam os comerciantes uns aos outros. As crianças entravam nas vielas e ruelas de Curva do Vento para anunciar a boa nova tão animadora a todos. Naqueles tempos aguerridos, poucas novidades seriam mais alvissareiras.


"O barco chegou! O barco chegou!", o coro repetia, tornando-se cada vez mais intenso, espalhando-se do porto à feira, da feira às casas, do centro às periferias. Os ventocurvenses, assim como outros cornos e forasteiros ali refugiados, repetiam a notícia numa crescente e animada corrente. E assim começava a corrida pelos paralelepípedos da avenida do comércio, ladeira abaixo rumo à praia. Os que não se juntavam à frenética procissão, seja por falta de dinheiro ou de esperança, desejavam boa sorte aos que partiam.


Fundada pela família Malícia, Curva do Vento nascera e crescera junto às falésias escarpadas do litoral ao norte e do braço esquerdo do Rio Seu Chico a oeste, tornando-se uma das maiores cidades da Cornália e atraindo gente de toda a região. Apesar de grande e costeira, a cidade dependia do comércio terrestre, e seu porto era apenas um conjunto de píeres e casebres de pescadores à beira de uma praia rochosa. Ali as famílias armavam suas barracas para vender o que os pescadores apanhavam quando a tempestade ao norte permitia: peixe, camarão, ostras e outros frutos do mar.


Em geral, pouco movimentada, a praia naquela manhã experimentava o rebuliço de dezenas chegando às levas pela ladeira da avenida. O local não era convidativo, sua areia escura se misturava a constantes pedras de diversos tamanhos. Os esparsos casebres dos pescadores, mesmo construídos no limite da maré, eram elevados sobre colunas de madeira para proteção contra os alagamentos causados pelas tempestades frequentes. Ao norte, o mar escuro e a eterna tempestade negra no horizonte contrastavam com o céu azul e as poucas nuvens que desimpediam o sol intenso acima. O calor era exacerbado pelo estranho vento seco que dava nome à cidade, vindo das terras áridas ao sul ao invés do mar.


O barco que todos esperavam, um pesqueiro adaptado de mastro único e vela triangular chamado Caixeiro-Viajante, já se encontrava atracado. Embora maior que a média das embarcações locais, mal suportava uma tripulação de cinco, e o espaço no casco para as mercadorias era limitado, apesar do número impressionante de caixas e caixotes que dali eram descarregados por pescadores e estivadores. Os trabalhadores formavam uma fila constante, indo e voltando entre o barco e a venda improvisada que se formava na ponta seca do píer.


"Cuidado com essas caixas aí", alertou Capitão Jacinto aos berros, sua voz quase se perdendo diante do ruído das ondas, do uivo do vento sul e do burburinho da multidão. Ver aquele tanto de gente acumulada na praia trouxe uma sensação, ao mesmo tempo, doce e amarga. Por um lado, tinha a certeza de lucrar com seu precioso carregamento. Por outro, não supriria as necessidades de toda aquela gente. "Tonho!", gritou o capitão ao filho primogênito e segundo em comando, "Cuida de descarregar o barco, que eu vou ali na praia pra modo de sossegar o facho desse povo todo!".


Tonho assentiu de imediato, e o velho Jacinto coçou a barba já branca e seguiu pelo píer até a ponta seca, onde a multidão esperava. Ali, sua esposa Nadica e os filhos mais novos do casal, Jonín e Narinha, abriam as caixas recém-chegadas com pés-de-cabra e organizavam os produtos em cima de um conjunto de caixotes vazios, formando um balcão improvisado. Pequenas caixas continham bijuterias, joias e prataria. Caixotes maiores vinham com temperos, carne salgada, bebidas alcoólicas, medicamentos, ferramentas e utensílios. Além dos engradados, eram trazidos da embarcação rolos e mais rolos de tecidos raros por aquelas bandas. Cada tipo de item já vinha com uma etiqueta escrita à mão contendo o valor de venda definido por Jacinto.


"Não se avexem! Não se avexem!", repetia o capitão, erguendo os braços e sorrindo. "Sejam todos bem-empregados! Eu trouxe tudo o que deu de Dragona, só tem coisa boa! Cada um leve só o que precisa, que aí vai ter pra todos, Divino Pai assim queira!"


Mas o público mal prestava atenção e, apesar dos pedidos, cada um só se preocupava em levar tanto quanto conseguisse pagar. Os preços eram salgados, variando de três a dez vezes o que seriam em tempos menos conflituosos. "Não aceitamos barões! Sem barões!", avisava Dona Nadica quando os clientes mostravam as moedas de ferro. "Aceitamos centos-avos de cobre! Vinténs de prata! Dobrões de ouro! Já barões de ferro não vão servir!"


E as pessoas pagavam, pois mesmo que os preços fossem altos a necessidade era ainda maior. Alguns o faziam sem reclamar, outros demonstravam a contrariedade nas faces pouco amigáveis. Entre resmungos, aquele sentimento velado crescia, e o Capitão Jacinto e sua esposa Nadica sabiam disso, mas seria impossível agradar a todos.


Não foi surpresa para ninguém uma voz elevar-se na multidão.


"É um absurdo o que vocês fazem com a gente!", esbravejou Trambico Braz, batendo com força num caixote para fazer barulho. Conhecido encrenqueiro local, Trambico apontou o dedo para o Capitão Jacinto e esbravejou, atraindo atenção para si: "O povo dessas bandas passando necessidade por causa do bloqueio, e vocês aproveitadores vêm para acabar com nossas economias! Os melhores produtos são só para os ricos! Deixam os pobres ainda mais pobres! E ainda não aceitam a moeda dos trabalhadores! Digo e repito: é um tremendo absurdo!"


Aquele tipo de acusação não era incomum, Jacinto já ouvira desaforos como aqueles a cada chegada de seu barco. O problema é que tal clamor inflamava a multidão, e não era raro acabar em confusão. "Não me venha falar em pobreza, que já fui pescador humilde!", o velho capitão urrou em resposta, abrindo os braços fortes e inflando o peito peludo. "Cresci com meu trabalho! Comprei esse barco com meu suor! Arrisco a vida indo pro leste e voltando com tudo isso! O preço que cobro é o preço que dá, ninguém é obrigado a pagar!"


"Para vocês verem!", retrucou Trambico, elevando ainda mais a voz. "O sujeito enricou e esqueceu o que é ser pobre! Não tem nem um cadinho de lembrança do que é passar necessidade! Se tivesse, não ia cobrar esse absurdo por remédio que os doentes precisam! E olha o preço desse tecido! Como que uma costureira vai pagar por isso pra depois cobrar uma miséria pela roupa que faz?"


As reações do povão ali ajuntado se multiplicavam. Uns silenciosamente concordavam com o capitão, sabendo das dificuldades que ele passava para trazer suas mercadorias. Outros pressentiam confusão e se dividiam entre ir embora ou se arriscar ali por necessidade de alguma mercadoria. Tinha aqueles que tomavam o lado de Trambico Braz, seja por concordar com a justiça de suas palavras ou pra barganhar com o oportunismo. E não duvide: ali no meio havia uns doidos por furtar uma coisa ou outra no meio da confusão. Assim sendo, os ânimos inflamados faziam outras vozes se elevarem.


"Minha mãe está doente e precisa desse elixir!", dizia um.


"Esses preços estão muito altos! Vou acabar na miséria se comprar!", falava outro.


"Tenha caridade com os mais pobres!", um coro repetia.


Naquele momento, um dos estivadores, ouvindo toda a comoção, vinha pelo píer com mais um carregamento de caixotes. Enquanto outros iam e vinham com um caixote por vez, às vezes dois ou mais se ajudando para trazer os mais pesados, o rapaz alto carregava nas costas nada menos do que três caixotes grandes, unidos por uma rede de pesca fortalecida com cordas, um peso totalmente desproporcional à sua magreza. Chegando à vendinha, o jovem e atento estivador parou logo ao lado do capitão, inclinando as costas e dobrando os joelhos para pôr gentilmente o conjunto de caixotes no chão. E então, livre do fardo, cruzou os braços e continuou a observar atentamente a discussão.


O capitão, já nervoso, urrou em resposta: "Tenho que viajar semanas pro leste evitando a tempestade e o bloqueio, sem nunca saber quando vai dar condições pra partir ou voltar! E preciso zelar por minha família, que fica sem mim enquanto eu e meu filho mais velho estamos no mar! O preço que cobro é justo!"


"Invenção sua! É ganância pura! O justo é ajudar as pessoas de Curva do Vento! Você abusa da necessidade dos outros!", retrucou Trambico Braz, voltando-se à multidão para inflamá-la ainda mais: "Olha só, meu povo! Ele cobra caro porque sabe que vocês não têm opção! Se cobrasse o justo ia vender muito mais e atender todo mundo! Todo mundo ia ficar feliz, e ele ia ganhar só um pouquinho menos! Mas o que o capitão aí quer mesmo, é ganhar muito dinheiro com pouco trabalho!"


As palavras de Trambico eram uma provocação à honra do Capitão Jacinto, que se aproximou do agressor e apontou-lhe o dedo na cara, se contendo para não começar uma briga: "Quem não quiser o meu produto que não compre! Eu ponho o preço que achar justo!"


Mas o público, tendo seus elementos mais cautelosos e pacíficos se afastado, já formava uma turba de uns dez a vinte que urravam impropérios e descontavam suas frustrações:


"É um absurdo abusar da gente assim!"


"Esse capitão egoísta devia se preocupar com os outros!"


"A gente devia pegar o que quer e pronto, que dinheiro ele já tem!"


Nisso o estivador se aproximou da venda e, pedindo licença para Dona Nadica, ficou em pé em cima do caixote mais ao centro. Já naturalmente alto, despontou acima de qualquer um ali e, atraindo a atenção de Jacinto e Trambico com uma breve e forte salva de palmas, avisou em voz alta: "Quem quer confusão já encontrou. O capitão tá aqui pra vender e não pra discutir. Quem não está satisfeito que se arribe daqui!"


Alguns dos arruaceiros reconheceram logo de cara aquele homem, sussurrando entre si: "Caraca, é o Zé Calabros!". Os mais inteligentes calaram a boca e se esconderam no meio do povo mais ordeiro, sabendo que se aquilo ali virasse briga, a coisa seria feia.


Trambico Braz obviamente não tinha inteligência muito elevada, pois quis argumentar: "Esses preços são injustos com o povo!"


Ao que Zé Calabros cruzou os braços e respondeu: "Então pega um barco, seu abestado, e traz as coisas pro povo, pois aqui quem decide o preço é o Capitão Jacinto! Compra quem quer, ninguém mandou gostar!". Apontou então para Trambico Braz, encarando-o com os olhos castanhos e falando num tom ameaçador e com a voz tão alta, que ninguém ali presente conseguiria deixar de ouvir: "E quem quiser discutir, que fale com os punhos e venha com o braço pra cima de mim, seu bando de fela-d'égua!"


A turba imediatamente se calou. Os que conheciam Zé Calabros, seja de ver ou de ouvir falar, nem pestanejaram. Os outros, notando o súbito silêncio, logo aquietaram. Trambico Braz encarou Zé, ensaiando alguma resposta ou ameaça, mas acabou nada dizendo ou fazendo. Ele já tinha ouvido as histórias: com o Zé só briga quem gosta de apanhar.


"E aí, seu aboletado?", Zé continuou a encarar, "Vai comprar? Ou vai dar licença pra quem tá na fila?"


Trambico engoliu em seco, baixou a cabeça e, resmungando o tempo todo, pegou duas garrafas de vinho dragonino, daqueles de menor qualidade. "Três vinténs! Eu costumava pagar oito centos por uma dessas!". Em seguida, deu um dobrão a Dona Nadica e pediu: "Completa metade com ataduras e metade com elixires", ao que foi prontamente atendido. Assim que recebeu as mercadorias, jogou tudo numa sacola de pano sob o braço e saiu, ainda resmoneando. Calabros desceu do caixote tão logo o reclamão sumiu de vista.


Dona Nadica respirou aliviada, e logo o público voltou a comprar ordeiramente. Embora fosse questão de minutos para que a sanha de compras voltasse ao ritmo frenético de antes, ninguém mais ousaria recomeçar a confusão.


Zé Calabros se sentou num dos caixotes ainda lacrados, passou a mão na cabeça para afastar dos olhos os malcuidados cabelos encaracolados e ficou a observar o movimento.


O Capitão Jacinto se aproximou, já bem mais calmo: "Agradecido, Zé! Não fosse tu aí, ia dar peleja. Preciso te compensar por isso!"


"Careço de compensação não!", refutou Calabros, "Só quero o combinado pelos caixotes. Já está tudo aí na praia, exceto os que vão pra coronelinha."


"Ah, mas um pouco a mais de moedas você vai receber, te garanto! Você merecia era muito mais, mas vai ser o que posso dar, e que Padim te pague o resto! Quanto às caixas da Coronel Malícia, os guardas já deviam estar aí pra pegar. Alguma coisa atrasou aqueles imprestáveis."


"Os guardas devem estar ocupados, essa cidade está uma zona!", Zé Calabros avisou. "Muita família capando o gato pra cá, pra escapar do bloqueio, e aí sobra gente sem emprego e sem dinheiro. Tá tendo muito ladrão, e tão comentando por aí que já tem bando de cangaceiro rodeando essas bandas."


Capitão Jacinto se mostrou claramente preocupado com a notícia. "Os cangaceiros já estão rondando por aqui? Você acha que é do bando de Severino?"


"E hoje em dia tem por aí algum desgramado desses que não seja?", Calabros questionou.


"Então lascou-se tudo!", Jacinto comentou baixando a cabeça.


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Já passava do meio-dia e o sol ardia no alto. A venda já tinha terminado, e até os caixotes vazios sumiram, comprados por pescadores e artesãos que reaproveitariam a madeira. Sob a sombra de palmeiras próximas à falésia, a família saboreava o almoço preparado e trazido por Firmina, a filha já moça do capitão. Também eram servidos os pescadores e trabalhadores que ajudaram a descarregar o barco, Zé Calabros entre eles.


O delicioso peixe assado na folha de bananeira, acompanhado de macaxeira frita, tinha um cheiro irresistível. Todos comiam com gosto, parando apenas para tomar uns goles de garapa ou cachaça, tudo por serventia do capitão, que estava mais do que feliz pela boa venda daquela manhã. Durante a refeição, os presentes contavam piadas e histórias, tanto reais como absurdas. Zé Calabros, contudo, pouco falava e muito ouvia, pois comia com a ânsia de quem raramente pode ter o luxo de tão farta refeição.


Pegou a todos de surpresa o soar de um apito três vezes em rápida sucessão, interrompendo os risos e conversas animadas.


A atenção se voltou aos seis guardas a cavalo, vestidos em uniformes e bonés azuis, que chegavam ao limiar entre os ladrilhos da avenida e as rochas da praia. No cinto, cada um tinha coldre para a garrucha e bainha para o sabre. O capitão se diferenciava por portar revólver, levar uma espingarda nas costas e vestir um chapéu adornado com medalha e chifres, um símbolo de prestígio na Cornália. Atrás da pequena tropa vinha um sétimo homem, um jovem recruta desarmado que conduzia um carro de boi.


"Finalmente apareceram!", exclamou Capitão Jacinto, levantando-se num pulo para recepcioná-los, mas antes virou-se a Tonho: "Meu filho, pega o pessoal aí e vai até o Caixeiro-Viajante descarregar os caixotes da Coronel Malícia, faz favor?"


E assim fizeram Tonho, Zé e os demais. Enquanto percorriam o píer, um dos pescadores curiosamente questionou: "Afinal, Tonho, o que tem nesses caixotes da coronelinha?"


Tonho respondeu: "Bom, tem dois só de trecos e cacarecos. Bebida, tempero, roupas chiques e coisas caras assim, mas o resto é pros guardas e jagunços da Coronel Malícia. Tem um caixote maior só com coisa alquímica: ataduras, daquelas caras que besuntam com pomadas pras feridas, e um monte de elixir e medicamento."


"E o outro caixote, o grandão?", questionou um pescador.


Tonho murmurou: "Arma e munição. Muita munição."


"Meu Padim do céu!", exclamou alguém do grupo. "É por causa dos cangaceiros, né não?"


Outro comentou: "Ontem chegaram uns pescadores lá da Bota do Judas. Tavam falando que a cidade já tá cercada pelo bando de Severino!"


"Pois é", Tonho assentiu, "Pior que se tiver conflito aqui, sabe-se lá quanto tempo dura o estoque da Coronel Malícia. Se a guarda ficar sem munição, Severino vai é tomar a cidade também."


"Mas vocês vão continuar trazendo munição pra coronelinha, né, Tonho?", perguntaram.


Tonho fitou a imensidão do mar, cujo horizonte parecia cada vez mais negro, tomado por escuridão só vencida brevemente por constantes relâmpagos. Respirou fundo diante daquele breu que contrastava tanto com o céu azul acima e respondeu: "Sabe-se lá quando que vai dar de navegar de novo..."


Zé Calabros, em silêncio durante toda a conversa, não se surpreendeu com os olhares desesperançados e suspiros preocupados dos presentes.


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Nas terras agrestes de Cornália, o calor da tarde é um fato incontornável. Após o almoço, é costume retirar-se para a sombra e tirar uma soneca. O comércio então fecha para só reabrir perto do entardecer, e os trabalhadores dormem sob a sombra ou vão tomar uns goles no bar. "Ai, ai, que preguiça", diriam os cornos.


Naquele começo de tarde, Zé Calabros corria ladeira acima da avenida do comércio. "Barriga cheia, pé na areia", diziam por aquelas bandas. O calor nem o incomodava tanto, sua pele de cor bronze já estava mais do que acostumada com o sol, mas de barriga e bolsos cheios, ele queria também descansar as pestanas. Fora um dia proveitoso, no qual ganhara quinze centos do capitão, sete a mais do que o combinado. Mas antes do descanso precisava de água, e para isso o rapaz se dirigia para a praça no centro de Curva do Vento, onde havia um velho poço.


O poço da praça era o marco original da cidade, inicialmente uma fazenda da família Malícia. Mais cedo naquele dia ali estavam muitas barracas de comércio vendendo artesanato, roupas, calçados e as comidas típicas da região: macaxeira, caju, carne-seca, frutos do mar e derivados. Naquela hora da tarde, contudo, a praça, ocupada por barracas vazias, mais parecia o centro de uma cidade fantasma, cena esta exacerbada ainda pelo uivo insistente do forte vento seco que sempre soprava do sul.


Do poço, Calabros puxou um balde cheio, do qual bebeu até se saciar e depois usou o que restava para refrescar-se, jogando a água sobre a cabeça. Não se importou em molhar as roupas velhas e surradas, pois logo o vento trataria de secá-las. Em seguida, abriu o embornal que trazia consigo e tirou dele dois odres, os quais encheu. Aquilo daria para matar a sede pelo resto do dia.


Afastando-se a passos lentos do poço, Calabros fitou ao sul uma maravilha que sempre o fascinava: o forte onde se abrigava a Coronel Malícia, um casarão enorme cercado por muros altos de alvenaria. O fascínio não vinha da construção em si, mas de sua peculiar fundação: a fortaleza fora erigida sobre um enorme bloco espesso de terra flutuante, quase uma pequena ilha que voava a dezenas de metros acima do chão e tinha um formato cônico, plano em cima, como se algum deus tivesse arrancado um pedaço do solo e largado ali pairando no ar. O único acesso àquela estranha ilha era uma ponte de corda que a ligava ao prédio da guarda municipal.


Esse fenômeno de terra flutuante não era único em Curva do Vento. Aqui e acolá encontravam pequenas ilhas como aquela, mas nenhuma tão grande quanto a que a família Malícia tomara para si nos primórdios da cidade. Ninguém sabia ao certo como aquilo era possível, nem por que tais ilhas voadoras não eram varridas para longe pelo vento. Os cidadãos contavam histórias de terras flutuantes ainda maiores perdidas nos sertões agrestes ao sul, e até se falava de uma cidade inteira que flutuava nos céus, um lugar maravilhoso e de tecnologia prodigiosa chamado Matríxia, que Zé Calabros sonhava em visitar um dia.


Recobrando-se do arrebatamento, Calabros voltou a apressar o passo. Seguiu para o oeste, correndo por vielas e ruelas, entre casarões e casas. Então deu um turno para o norte, de volta ao litoral. Ali não havia uma ladeira com acesso ao mar, e a falésia íngreme de uns dez metros de altura separava a cidade das rochas praieiras abaixo. Com o passo rápido, Zé escalou um ipê amarelo e dele saltou para um casarão vizinho, construído à beira da escarpa, correndo pelo telhado sem danificar uma única telha. Por fim, do alto da construção pulou o vão de uns quatro metros para o seu refúgio: um pequeno pedaço de terra flutuante que voava uns vinte metros acima da praia.


Zé Calabros descobrira aquele estranho pedaço de chão por acaso e fizera dele sua casa enquanto ficasse na cidade, visto que ninguém mais parecia ligar para ele. A "ilha" não era grande coisa: não tinha mais do que uns cinco metros de uma ponta a outra, mas nela crescia grama e um belo cajueiro, que providenciava fruta docinha e sombra farta. A visão era privilegiada: dava pra ver o vasto oceano ao norte, toda a cidade ao sul, as árvores do Vale Verde a leste, e o Rio Chico Sinistro, que a oeste delimitava a cidade e desembocava no oceano. Perscrutando mais longe, via-se também as terras áridas que dominavam todas as direções da Cornália, com exceção do norte.


Deitando-se à penumbra da árvore, Zé se pôs a pensar. Curva do Vento, como tudo em sua vida, era um destino temporário, e não demoraria a vir o dia em que ele voltaria a pôr o pé na estrada. Mas aonde iria?


Para o oeste nada havia além de pequenos vilarejos costeiros. As cidades maiores e mais próximas eram Bota do Judas a leste e Santa Rita ao sul. Essas duas estavam nas outras pontas do Vale Verde, a porção de terra mais fértil e verdejante da Cornália, delimitada pela divisão do Rio Seu Chico em dois braços, chamados braço esquerdo ou Chico Sinistro, a oeste, e braço direito ou Chico Propício, a leste.


As notícias que vinham de Bota do Judas não eram boas. Estaria Santa Rita segura? Calabros não ouvia nada de lá fazia um tempo. Tudo o que tinha certeza era que toda a Cornália vivia dias muito ruins.


Sim, dias ruins, mas Calabros nunca conhecera tempos bons. Antes de Severino, houve o Coronel Tibúrcio. Antes de Tibúrcio, houve o dia em que perdera sua família. Lembranças amargas, que deixavam Zé receoso, mas ele não perderia a esperança de ver dias melhores. O que foi mesmo que Madre Magnólia disse uma vez? "Esperança é como o céu"? Pensar na velha clériga trazia lembranças mais agradáveis.


Deitado ali sob a sombra, fitando o horizonte ao norte, onde o céu azul se tornava a eterna tempestade sobre o mar, Zé não demorou a cair no sono. Mas pensar em Magnólia faria seus sonhos recordarem-no de outro dia fora do comum...


Outro dia em que monstros vieram...


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Nove anos antes...


Vila Maria era um vilarejo no sertão às margens do Catengão, o segundo grande rio da Cornália. Como ficava na estrada que ligava São Vatapá do Norte, a leste, a todo o resto da Cornália, as notícias de toda a região sempre passavam por lá. Era uma terra geralmente pacata, e em seus arredores existia um rancho que se tornara um pequeno orfanato.


"Monstros! Monstros!", Cisso veio aos berros correndo pela estrada de chão. As crianças do orfanato de Vila Maria logo se assustaram, algumas até imitando os avisos antes mesmo de saberem o que acontecia: "Monstros! Monstros!"


É claro que a agitação repentina chamaria a atenção das sacerdotisas que cuidavam do lugar. Madres Magnólia e Hildinha e a jovem Irmã Mirna correram de um lado para o outro para arrebanhar as crianças e levá-las para o interior do casarão.


"Calma! Calma! Que história é essa, Cisso?", questionou Madre Hildinha, ajoelhando-se diante do menino e segurando-o pelos braços.


"Monstros, Madre! Monstros na Vila Maria!", repetia aos berros. O choro do menino era alimentado por um medo real, ficando claro que não se tratava de uma molecagem para assustar os colegas. O espanto inicial das crianças deu lugar a um misto de medo e curiosidade, e as outras treze crianças do orfanato foram se aglomerando ao redor dele para ouvir sua história.


"Que monstros, menino? O que você viu?", insistiu Madre Hildinha.


"Vi quando iam pra vila, Madre!", Cisso choramingava, "Fui comprar pão igual você pediu. Quando tava chegando na vila, vi dois capirotos enormes chegando pela estrada pra São Vatapá! Era um maior que o outro, falando coisas esquisitas e rindo feito diabos!"


"Eram monstros iguais aos que levaram a família do Zeca?", perguntou a órfã Ritinha, apontando para o menino José Calabros, então com 12 anos.


"Não, não", choramingava Cisso, tentando conter o choro para melhor falar, "eles andavam, não voavam, e pareciam gente, mas eram grandes, enormes! Um deles era coberto de pelos e com uns chifrões na cabeça! O outro era ainda maior, parecia um homem, mas era tão grande que podia pisar numa pessoa e nem notar! Eles faziam tudo tremer quando andavam!"


"Crianças, acalmem-se!", aproximou a velha e sábia Madre Magnólia. "Se eles riam, é porque são inteligentes. E se são inteligentes, então podem não querer fazer mal! Façamos assim: orem a Padim, peçam proteção para o povo da vila, que eu mesma vou até lá para ver se está tudo bem."


"Madre Magnólia! Não faz isso não! Eles vão te fazer mal!", implorou Cisso.


A clériga, contudo, abaixou-se ao lado dele, tocou-lhe gentilmente o ombro e sorriu: "O Divino Pai está comigo e com todos vocês, meus filhos! Nenhum mal há de me acontecer, e havendo qualquer perigo, voltarei para tirá-los daqui, está bem?"


Havia algo em Magnólia que transpunha simples calma, uma verdadeira aura de tranquilidade. Ela era conhecida e querida no orfanato não só pela sabedoria e paciência, mas também pelas histórias fantásticas que contava sobre terras distantes. Falava de locais maravilhosos, monstros e dragões, e sobre "santos" da Cornália e de outras terras, grandes heróis que realizaram feitos até então considerados impossíveis. Ela própria às vezes fazia pequenos milagres, como curar os feridos com o toque, ou espantar animais selvagens apenas com seu olhar plácido. "Bênçãos de Padim", ela explicava, e o povo da vila a procurava por tais dádivas.


"E se você não voltar, Madre?", perguntou o jovem e apreensivo Zeca.


Magnólia continuou a sorrir. "Tenha esperança, José! Ore por mim, se tem alguma dúvida. Padim vai me proteger!"


Então, quando Madre Magnólia partiu para a Vila Maria, as crianças confiavam que ela voltaria bem. Por via das dúvidas, contudo, as demais clérigas insistiram que todos no orfanato orassem por ela.


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Foi quase uma hora de apreensão. Num dia normal, as crianças estariam em aula, aprendendo modos, leitura, escrita, matemática, plantio e criação de animais. Naquele dia, porém, as atividades foram atrasadas até que se tivesse notícias de Magnólia e do povo de Vila Maria. Houve, portanto, um enorme alívio quando a clériga retornou sorrindo. As crianças saíram correndo para recepcioná-la com abraços, num verdadeiro clima de festa.


"E os monstros? E a Vila?", perguntavam os órfãos, "Estão todos bem? Te fizeram mal?"


Madre Magnólia sorriu. "Não são monstros, meus pequenos, mas viajantes de terras muito distantes!"


"Eram tão grandes quanto o Cisso falou?", perguntou a pequena Nina.


"Não os vi, pois já tinham partido quando cheguei, mas me disseram que eram realmente enormes!", falou a madre, rindo de satisfação. "Quando os viajantes foram avistados, o povo ficou todo assustado, igualzinho o Cisso. Uns pegaram em armas, outros já fugiam, mas aí os viajantes chegaram, sorriram, cumprimentaram as pessoas e prosseguiram em viagem sem muitas explicações, deixando todos muito atônitos!"


Zeca se aproximou admirado com a coragem da clériga. "Você não teve medo, Madre? Eles podiam ter te feito mal!"


"Medo?", Magnólia pousou o olhar sobre o menino, "Medo tive sim. Mas mais importante do que minha vida era me assegurar que vocês, meus anjos, estariam seguros. E eu tinha esperança de que nada de ruim aconteceria!"


"Esperança, Madre?", Zeca fitou-a incrédulo, "E se quisessem te fazer mal?"


"Ah, José...", Magnólia suspirou, "Esperança não é esperar que tudo corra bem".


"E o que é esperança, então?"


"Esperança é como o céu, José! Não importa o quão forte é a tempestade, nem o quão negra é a noite, o céu sempre volta a ser azul! Esperança te dá forças para resistir à tempestade, para esperar que o sol nasça de novo... para fazer o impossível!"


"Como os heróis das histórias? Os 'santos' dos quais você tanto fala?"


"Exatamente!", Magnólia respondeu entusiasmada. Em seguida, a velha clériga bateu palmas, ergueu a voz e voltou-se aos órfãos reunidos: "Mas o que é isso? Acham que vão escapar das aulas de hoje, crianças? Para dentro, vamos! Para dentro!"


As crianças suspiraram desanimadas. As clérigas sorriram e foram encaminhando os pequenos para dentro.


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A aula começava com as crianças sentadas no chão, dispostas num semicírculo ao redor de Madre Hildinha, que ensinaria a eles aritmética. Números! Zeca odiava números! Somar qualquer coisa que não se pudesse contar nos dedos era uma tarefa árdua! Naquela manhã, então, era ainda mais complicado prestar atenção, pois sua mente permanecia fixada nos "monstros". O menino queria vê-los. Não sabia bem o porquê, mas algo naquele evento o enchia tanto de medo como de curiosidade. Contudo, o tempo passava, e os monstros estariam cada vez mais distantes. Zeca precisava agir rápido.


Madre Hildinha era muito dedicada ao que fazia. Tão dedicada, que em meio às explicações era fácil burlar sua atenção. As crianças ali reunidas tinham idades diversas e estavam em diferentes estágios de aprendizado, e havia apenas Hildinha para ensiná-las. Zeca esperou que um dos órfãos a chamasse para tirar uma dúvida. Não tardou a acontecer, e Ritinha, com dificuldades para entender multiplicação, logo pediu a atenção da professora.


Zeca primeiro arrastou-se sentado para o ponto cego atrás da clériga e então levantou, esgueirando-se junto à parede na direção da janela. Cisso chegou a olhar para ele, com aquela cara de "Que diabos você tá fazendo?". Zeca respondeu soprando o dedo diante da boca, pedindo silêncio, e então saltou para fora.


O orfanato era apenas um rancho, com um casarão, uma capelinha do Divino Pai na entrada, uma horta e o cercado dos animais, onde havia galinhas, uns porcos e um punhado de vacas leiteiras. Tendo escapado da sala de aula, Zeca deu a volta pela horta e saltou a cerca que limitava a propriedade. Contornou por fora, evitando ser visto até chegar à estrada de terra batida que ia para Vila Maria, e disparou em corrida.


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"Eles não pegaram estrada nenhuma não, menino! Seguiram margeando o rio lá pra Catinga Danada! Só podem ser abirobados!", disse o velho Nhô Zico de Vila Maria.


Zeca agradeceu e apressou-se até o Rio Catengão, seguindo-o margem acima, rumo ao sul. Conforme avançava na caatinga, o ambiente se tornava mais seco e severo. Sem as mãos humanas para plantar e regar, árvores frutíferas e pasto davam lugar a uma paisagem cada vez mais árida e rochosa, com plantas esparsas, cactos e árvores retorcidas.


O ímpeto infantil impulsionava a corrida de Zeca, mas não demorou para que o sol intenso atrasasse seus passos e a sede crescente o forçasse a parar. Limpando o suor do rosto, Zeca pensou em tomar água do rio, mas o pessoal da vila advertia que o Catengão nascia em algum lugar da Catinga Danada ao sul, e dizia-se que os venenos daquela região eram trazidos com a correnteza, exigindo-se ferver a água antes de bebê-la.


Sem outra opção, o menino pegou uma pedra no chão, aproximou-se de um cacto de folhas grossas e espinhudas, e golpeou-o seguidamente, primeiro para arrancar-lhe os espinhos e depois para partir-lhe uma folha. Em seguida bebeu o suco gosmento que escorreu da planta, um gosto azedo, mas que matava a sede. Um truque que aprendera com os matutos de sua terra natal.


Com a sede contida, por enquanto, o menino insistiu em seguir adiante, desta vez a passos lentos. O sol cada vez mais alto no céu e a barriga começando a roncar indicavam a proximidade do meio-dia, e Zeca já considerava retornar à vila quando ouviu uma gargalhada monstruosa carregada pelo vento: "Huá huá huá huá!"


O menino sorriu satisfeito e, ignorando a sede e fome, voltou a acelerar o passo. Após um longo e suave aclive, viu aparecerem não muito distantes as formas daqueles dois enormes viajantes. Naquele instante, o medo superou a curiosidade, e Zeca reduziu o passo mais uma vez, esgueirando-se atrás de pedras e cactos para não ser visto. Furtivamente, aproximou-se mais e, agachando-se atrás de uma árvore retorcida, pôde vê-los a menos de quinze metros de distância.


O maior parecia um homem de longos cabelos negros e rosto limpo, mas era tão alto que mesmo sentado à margem do rio igualava-se à altura do companheiro. Vestia calça e capa de peles, cinto e botas de couro e portava um embornal, mas deixava o peito e braços à mostra. Sua voz trovejante falava num idioma estranho que Zeca não conseguia compreender, mas parecia estar reclamando do calor, pois compulsivamente pegava água com as enormes mãos e jogava-a sobre o rosto e o peito nu para refrescar-se.


O outro monstro, tão alto quanto dois homens juntos, estava em pé logo ao lado do primeiro. Sua aparência era ainda mais exótica: tinha tanta largura de ombro a ombro quanto era alto, e as pernas pareciam muito curtas em relação ao corpo. Sua pele era um tom entre cinza e vermelho e os olhos pareciam fogo, brilhando num vermelho intenso. Tinha cabelos compridos ruivos e uma barba cheia de tranças e adornos, tão longa que alcançava-lhe a cintura. O que Cisso vira como chifres eram protuberâncias metálicas de um elmo, que surgiam da testa e curvavam para trás, e o que parecia um corpo peludo era na verdade uma capa de peles bem grossas que cobriam-lhe ombros e braços. Vestia uma roupa pesada de couro e partes metálicas e levava preso às costas um enorme machado de dois gumes.


O grandalhão continuava a reclamar e a jogar água sobre o corpo. Já o barbudo pousou a mão no ombro do companheiro, falando num tom calmo e zombeteiro, seguido por uma gargalhada vigorosa.


Diante de tamanho escárnio, o grandalhão, tomado por intensa irritação, se ergueu subitamente, revelando-se ser quase duas vezes mais alto que o barbudo! Zeca espantou-se com o levantar imprevisto e o urro furioso que se seguiu.


Virando-se com olhos raivosos para o barbudo, que continuava a rir intensamente, o grandalhão desferiu-lhe um potente soco na cara, causando um impacto estrondoso. Com a força daquele golpe, o menino esperava ver o barbudo ser derrubado, mas este apenas virou o rosto com o impacto e deu um meio passo para trás para manter o corpo firme no solo.


Os dois monstros se fitaram por um instante, ambos erguendo os punhos como se prontos para brigar. Zeca arregalou os olhos, sem entender o que acontecia. Não eram eles companheiros de viagem? O que aconteceria se dois seres tão imensos começassem a brigar? A tensão crescia no ar quente da caatinga por desconfortáveis segundos...


E então os dois começaram a gargalhar. O menino ficou mais uma vez estupefato diante da mudança de humores. Eles riam descontroladamente, quase perdendo o ar, mas aos poucos foram se contendo, e o riso foi ficando cada vez mais sutil.


Limpando uma lágrima que escorrera-lhe dos olhos de tanto gargalhar, o barbudo falou algo num tom jocoso, ainda misturado ao escárnio, ao que foi respondido com uma frase curta do grandalhão. Pareceu haver silêncio entre os dois, quebrado apenas pelas risadas cada vez mais contidas. A tensão parecia se esvair por completo...


...e então os dois começaram a brigar de verdade.


Um soco do barbudo atingiu o estômago do maior, fazendo-o recuar, perder o equilíbrio e cair no rio. Sob novas gargalhadas do agressor, o grandalhão saltou da água num impulso só, pousando diante do oponente e desferindo-lhe um chute no peito. O barbudo inflou o peito e firmou os pés no chão, recebendo o golpe diretamente sem titubear. E a partir daí a briga foi se tornando mais e mais intensa.


O maior era muito mais ágil, desviando de golpes e contra-atacando com socos e chutes poderosos. O outro bloqueava os ataques recebidos com o próprio corpo, como se aqueles impactos vigorosos mal o afetassem. O chão tremia a cada passo dos dois, e estrondosas ondas de choque se seguiam a cada golpe bem-sucedido. Zeca observava boquiaberto, atentando-se aos movimentos dos combatentes.


Continuaram a brigar por alguns minutos. Foi então que os dois se engalfinharam, e o barbudo girou o corpo, jogando o outro para trás. Com aquele golpe, o grandalhão perdeu o equilíbrio, cambaleou e caiu bem sobre a árvore onde Zeca estava. Prevendo o perigo, o menino deixou o esconderijo antes que fosse esmagado pela queda daquele gigante. Tão logo o grandalhão caiu, contudo, o impacto não só ergueu uma nuvem de poeira e pedras, como fez Zeca perder o equilíbrio e tombar no chão.


"Para! Espera!", pediu o barbudo, falando na língua comercial, muito similar ao cornum da Cornália. O grandalhão já se levantava quando percebeu o aviso e, baixando a guarda, olhou na direção que o companheiro apontava.


Zeca se levantava meio atordoado quando notou o súbito silêncio. Já em pé, tremeu de medo e virou-se lentamente para encarar os dois imensos viajantes, que o fitavam curiosamente.


"É um gulli?", questionou o maior, abaixando-se para ver de perto aquele ser tão pequeno.


"Claro que não, teu idiota! Não vês que é um filhote de humano?", disse o barbudo, aproximando-se de Zeca a passos lentos que faziam a terra tremer.


"Eu acho que é um gulli bem alto!", insistiu o grandalhão.


"É só um humano pequeno!", reforçou o outro.


Zeca, tremendo de medo, ficou ali boquiaberto, vendo os dois enormes viajantes iniciarem nova discussão. "Gulli, seu imbecil!", um dizia. "Humano, teu energúmeno!", o outro respondia. E cada vez insistiam num tom mais ameaçador e impaciente.


"Eu sou um humano!", respondeu Zeca, antes que os dois voltassem a se espancar.


O barbudo sorriu, bateu a mão no peito e gargalhou vitorioso: "Huá huá huá huá! Eu falei que era um filhote de humano, teu panaca!"


"Gulli ou humano... É preciso um baixinho para identificar outro!", provocou o grandalhão.


"Baixinho? Ora, quebrarei tua cara por isso!", enervou-se o barbudo, já erguendo o punho em desafio.


"Gahahahaha!!!", riu o grandalhão. Sim, essa era a risada dele.


"E vocês são o quê? Dois gigantes?", perguntou Zeca.


A pergunta pareceu frustrar os dois.


"O quê?!? Como ousas me confundir com um gigante?", perguntou o barbudo indignado.


"Ele, um gigante?", indagou o grandalhão, "Não está vendo que ele é um anão?"


"Anão?", Zeca fitou confuso, "Mas ele é tão... tão grande!"


O barbudo sorriu novamente, como se tivesse recebido um grande elogio. Já o grandalhão suspirou fundo, explicando: "Vocês humanos pensam que são o centro do mundo! Por que acham que anões seriam baixinhos em relação a vocês?"


"Baixinho é o teu passado!", enervou-se o anão.


"Gahahaha!", provocou o gigante, que logo em seguida ignorou o companheiro, deixando-o ainda mais irritado, e voltou-se ao menino: "O que faz aqui no meio desse deserto, menino? Está perdido?"


"Estou seguindo vocês", respondeu.


"Que curiosidade, hein?", sorriu o gigante, sentando-se no chão diante do menino. "Mas acho que é normal uma criança querer saber mais sobre viajantes tão estranhos quanto nós! Façamos o seguinte, então: já é quase meio-dia, então vamos preparar um almoço para matarmos tanto sua curiosidade quanto nossa fome! Mas depois, prometa-nos que vai voltar para casa, pois seus pais devem estar preocupados, e estamos numa jornada perigosa demais para crianças!"


"Não sou criança, já tenho 12 anos!", disse Zeca. "E meus pais não estão preocupados, porque sou órfão!"


Os dois viajantes riram. "Qual é seu nome, rapaz?", perguntaram.


"Eu sou José Calabros, mas quase todo mundo me chama de Zeca."


"É uma honra conhecê-lo, pequeno José do Clã dos Calabros!", disse o gigante com um sorriso no rosto, "Eu sou Svar Quebra-Pedras, venho do distante reino de Garganth! Sou um gargan! Ou um gigante, como dizem na língua humana!"


"E eu sou Brunnhardt Moldaço, guerreiro de Ingeborg! E na nossa língua, nós anões somos chamados dwarvalfar!"


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O grandalhão Svar cobriu a cabeça com um capuz que fazia parte de sua capa para proteger-se do sol intenso. Em seguida, retirou do embornal um pacote de couro oleado, o qual abriu para revelar uma refeição de viagem: um rocambole de pão seco recheado com carne salgada. Removendo as enormes botas, sentou-se no limite do rio, mantendo as pernas na água.


Já o barbudo Brunnhardt revelou ter também um embornal próprio, antes oculto sob o pesado manto. Dele removeu também um pacote de couro, que abriu para retirar um enorme naco de carne-seca. Sacou uma faca do cinto, que usou para cortar um pedaço para comer, embalando o resto para uso posterior. Ao contrário de Svar, que suava sem parar e parecia imensamente incomodado com o calor, Brunnhardt permanecia ali sob o sol como se nada o afetasse.


Ambos removeram uma pequeníssima parte de suas refeições e deram a Zeca, mas para o menino era mais comida do que jamais caberia na barriga de um humano adulto. Zeca sentou-se à sombra de uma árvore baixa e retorcida, e pôs-se a roer aquela carne dura, preparada para os gostos de seres tão grandes.


"É isso que vocês comem?", perguntou o menino, não gostando do sabor.


"Gahahaha!", riu Svar, "Em viagem sim! Não é como se tivéssemos muita escolha!"


"Se aqui tivesse pelo menos algum animal grande, como um devatauro ou uma roca, preferiríamos caçar!", informou Brunnhardt, "Mas sem boa caça, é preciso se contentar com a ração de viagem!"


"Até compramos comida pelas cidades que passamos", Svar completou, "mas aqui na Cornália não há cidade grande o bastante para nos suprir! E aí nos resta aproveitar o que já trazíamos!"


"A vida na estrada não é fácil, garoto!", sorriu Brunnhardt, "Tu podes apostar que sentimos falta dos banquetes de nossas terras!"


"E que calor faz aqui, hein?", reclamou Svar, usando a mão livre para puxar mais um pouco de água do rio e refrescar a testa.


"Huá huá huá!", gargalhou Brunnhardt, virando-se ao menino enquanto apontava o gigante. "Os gigantes são mesmo uns moles! Não suportam um calorzinho bom desses! Ouça aqui, menino! Gargans são criaturas do frio, acostumados com a neve perene dos prados e montanhas de Garganth!"


O calor incomodava, claro, mas o menino parecia mais resistente a ele do que o gigante. Enquanto a pele branca de Svar mais parecia um pimentão de tão avermelhada, o menino tinha o tom brônzeo de quem se expõe constantemente ao sol. Também os cabelos longos e lisos de Svar se opunham aos curtos e encaracolados de Zeca. Por outro lado, Brunnhardt, a despeito de ter barba e cabelos tão compridos e vestir-se sob pesadas peles e peças de armadura, não parecia se incomodar nem um pouco. Sequer escorria alguma gota de suor de sua testa!


"Os anões não sentem calor, Brunnhardt?", questionou Zeca.


Brunnhardt sorriu com um ar de superioridade. "Calor? Bah! O calor daqui nem se compara com minha terra natal, os planaltos infernais de Guntherland, em Ingeborg! Nós, anões, fomos forjados pelos deuses a partir de rocha e fogo!"


"Deuses? Que deuses são esses?", o menino fitou curioso.


"Sim! Nós oramos para muitos deuses! O maior dos todos é Odenos, deus dos deuses, pai de todos. E guerreiros como eu tomamos como patrono Tyral, o trovão, mas há muitos outros, como Haldur, o deus da justiça, e Barndell, o guardião!"


"Bah!", interrompeu Svar. "Eldraf, o deus-pai, esmagaria Odenos com uma mão nas costas! Nós, gigantes, adoramos aos verdadeiros deuses, como Tarandarl, Firngorn e Humbolc!"


"Que fiquem com vossos mitos estúpidos!", retrucou o anão. "Vós gigantes adorais só a invenções de vossa ignorância!"


Os dois se encararam, olhares furiosos. "Eu devia quebrar sua cara por caçoar dos deuses! Vai encarar, anão?", provocou Svar.


"Então enfrenta-me se quiseres perder teus dentes, gigante!", respondeu Brunnhardt.


"Ei, ei! Vocês vão brigar de novo?", Zeca interrompeu.


Os dois caíram na gargalhada. "Huá huá huá!". "Gahahaha!".


"Não te importuna com nossas desavenças, jovem Calabros!", sorriu Brunnhardt, "Garganth e Ingeborg são nações rivais há dezenas de milhares de anos! Em um tempo a muito esquecido, o destino provocou uma grande guerra sangrenta entre nossos povos, mas hoje o esporte favorito de ambos é só importunar um ao outro! Huá huá huá!"


"Gahahaha!", gargalhou Svar, "Mas... e quais são os deuses aos quais vocês, humanos da Cornália, oram? Por acaso é a Sunth que rezam, como fazem os humanos de Biorca? Ou talvez Anaren dos mares, como fazem os de Atallantys?"


"Sunth? Nunca ouvi falar!", respondeu Zeca, "Aqui todos oram ao Divino Pai, nosso Padim, que nos olha lá do céu! Mas os pescadores lá da costa falam desse tal Anaren também, pedindo pra ele diminuir a tempestade e trazer boa pesca."


"Hmmmm", Svar murmurou pensativo, "E esse Divino Pai... ele fulmina seus inimigos com raios e tempestades?"


"Ah... acho que não", disse o menino.


"É ele um guerreiro cuja espada decapita os malfeitores?", questionou Brunnhardt.


"Não!", Zeca respondeu.


"Estaria ele em luta eterna com os mortos inquietos que pereceram sem honra?"


"Comanda o fogo para incinerar demônios e os inimigos de teu povo?"


"Traz pestilência e morte aos que não se curvam a ele?"


"Não, não e não!", o menino insistia.


"Bah, nunca entendo os deuses humanos! Jamais adoraria a um deus que não é mais forte do que eu!", disse Svar.


"Tão abstratos e intangíveis!", concordou Brunnhardt.


Zeca fechou a cara diante dos comentários. "E o que seus deuses fazem de tão bom?"


"Tudo o que seu deus não faz, e muito mais!", respondeu Brunnhardt. "Eles forjaram o mundo com fogo, ar, água e terra, e quando concluíram sua obra decidiram povoá-la. Odenos, deus dos deuses, moldou os anões a partir de rocha e fogo! Por isso somos tão fortes, resistentes e ferozes, e calor algum nos incomoda!". O anão estufou o peito e sorriu vitorioso.


"Bem, ele está certo, exceto por atribuir o feito aos deuses errados!", explicou Svar, atraindo para si um olhar zangado de Brunnhardt. "E depois que Eldraf fez a primeira raça, os anões, ele viu que cometeu um erro! Eles eram tão impacientes, e o calor do fogo os fez derreterem como ferro fundido, até ficarem baixinhos demais!"


"Baixinho serás tu quando eu cortar tuas pernas! Conte a história direito!", Brunnhardt ameaçou.


"Gahahaha!", riu Svar, se contendo e continuando: "Então os deuses decidiram tentar novas raças, cada uma feita de diferentes elementos. Foi de Tarandarl, o deus-trovão, a ideia de combinar a força da rocha com a fluidez da água, e assim nasceram os gigantes. É por isso que somos tão fortes quanto as ondas que castigam as escarpas e tão resistentes quanto as montanhas, podendo suportar o frio mais intenso das piores noites de tempestade!"


"E assim os deuses continuaram a criar todas as outras raças, mas nenhuma delas alcançou a perfeição dos primogênitos, os anões! Huá huá huá!"


"Outras raças?", questionou Zeca.


"Sim.", respondeu Svar, "Os alados foram nascidos do vento e do fogo, e os pequeninos têm a essência de água e vento! Até tiveram umas raças que não deram muito certo, criadas a partir de elementos antagônicos!"


"Ah!", sorriu o menino com imensa curiosidade: "E os humanos?"


Brunnhardt sorriu e respondeu de prontidão: "Os humanos? Ninguém sabe qual deus os criou, nem para quê! Os humanos não são água, nem fogo, nem terra ou vento!"


"Vocês humanos são vazios por dentro!", completou Svar.


A resposta pegou Zeca de surpresa. "Vazios por dentro...?", o menino repetiu sem esconder o desapontamento. "Somos tão fracos assim?"


Os dois se entreolharam como se não pudessem de forma alguma compreender a razão de tamanho desapontamento. "Fracos?", questionou Svar, "Isso não é fraqueza!".


Brunnhardt continuou: "Isso significa que os humanos podem se tornar o que quiserem! Vós não fostes definidos ao nascer, e o destino não vos controla! Tal é a maior força que pode existir neste mundo!"


O menino não entendeu direito, mas se empolgou com aquela revelação. "E os dragões?"


"Os dragões não são naturais!", Svar respondeu, "Eles são fogo, rocha, vento e água, tudo misturado com violência! Não foram obra dos deuses, mas do rei-destino, Khem!"


"Não fala esse nome!", interrompeu Zeca.


"Como é? Não posso falar o nome dele?", questionou o gigante.


"Não! Por estas bandas, não se diz esse nome de jeito nenhum! Se você fala no diabo, aparece o rabo! Aqui ele é conhecido como o Diabo Velho, e basta isso!"


Svar e Brunnhardt riram. "É uma forma interessante de pensar! Mas se já ouviu falar dele, então sabe a velha história: 'Há muito, muito tempo existiu um reino...'"


"Conheço!", respondeu Zeca.


"Huá huá huá!", riu o anão, "Acho que não há ninguém nesse mundo que não conheça! Pois então, essa velha história tem relação com a razão de estarmos aqui em suas terras!"


O menino olhou perplexo. "Como assim? Não estou entendendo!"


"Lembra-te que falei de uma guerra entre anões e gigantes?", questionou Brunnhardt. "Foi por causa do... 'diabo velho'... que nossos povos se odiavam tanto! Mas então houve dois reis..."


"...Austgar e Olaf...", interrompeu Svar.


"Sim! Olaf de Ingeborg e Austgar de Garganth!", o anão continuou, "Eles se uniram a outros grandes heróis e confrontaram o rei enlouquecido! Quando retornaram para casa, declararam que a guerra entre gigantes e anões terminara definitivamente, e instituíram como elo entre nossos povos o Titanathlon!"


"Titanathlon?"


"O Torneio dos Titãs!", informou Svar, erguendo-se da água e falando com empolgação: "Um duelo anual entre nossos povos! É selecionado um local distante e inóspito, onde será guardada nossa relíquia sagrada. Os competidores precisam atravessar o campo do duelo, enfrentando a si mesmos e aos guardiões da relíquia!"


"O competidor que conquista o Titanathlon se torna o 'titã', o campeão de seu povo, e sua nação é declarada a superior até o ano seguinte! É a maior honra que pode existir!"


"Uau! O torneio deste ano vai ser aqui na Cornália? Humanos podem participar?", questionou Zeca.


Svar riu. "Este ano o torneio aconteceu faz pouco tempo! Eu e Brunnhardt até participamos como guardiões! Mas só os mais poderosos de cada povo podem se tornar competidores! E quanto a humanos... as regras não impedem, e já tivemos uns desafiantes humanos algumas vezes, este ano inclusive, mas nenhum jamais ganhou o torneio!"


"Talvez um dia eu participe, então!", riu Zeca. Svar e Brunnhardt riram com ele.


"Eu e Brunnhardt estamos aqui para treinar para o Titanathlon do próximo ano!"


"Veja bem, meu rapaz: nós fizemos uma promessa, uma jura de sangue!", sorriu Brunnhardt. "Seja ano que vem, seja num futuro mais distante, um dos dois será o campeão!"


"Até lá, treinaremos juntos, até que um de nós seja digno de ser chamado de titã!"


"Uma jura de sangue é algo muito sério?", perguntou Zeca.


Brunnhardt explicou: "Sim, não é algo que se faz levianamente! Cada um de nós faz um corte na palma da mão direita, e então unimos nossas mãos em acordo, fazendo nossas promessas ao mesmo tempo em que nosso sangue se mistura!"


"É algo que vale mais do que a própria vida!", completou Svar.


"Eu também fiz uma promessa que vale mais do que minha própria vida...", disse Zeca, erguendo o braço direito e mostrando uma fita de tecido branco presa a ele.


"O que é isso?", questionaram os viajantes.


"Uma fita do Padim! Se você amarra no braço, só pode retirar quando cumprir o prometido!"


Brunnhardt mostrou-se perplexo: "Tu és novo demais para uma promessa dessas, jovem Calabros!"


"Gahahahaha!", riu Svar, "gosto da atitude desse menino, mas é hora de partirmos, assim como você precisa voltar para a sua vila!"


"Mas por que vocês tão indo pro sul, seguindo o Catengão?", questionou Zeca. "Para lá só tem a Catinga Danada! É seco, cheio de bicho perigoso, e até o ar é venenoso!"


Svar respondeu: "Nós sabemos! Gahahahaha! Você não ouviu? Estamos treinando para o Titanathlon! O que quer que haja nessa Catinga Danada não se compara aos perigos que os desafiantes do torneio enfrentarão!"


"Além do mais, a caatinga não é nosso objetivo!", continuou Brunnhardt. "Não! A caatinga é só o caminho! Vê as montanhas de Dragona, ao leste? Seguindo uma longa jornada ao sul, elas dão lugar a um vale onde o rio nasce. É a entrada de Vol'kor! É para lá que vamos!"


"Vamos desafiar os senhores de Vol'kor!", gargalhou Svar.


Vol'kor. A menção deste nome fez o jovem José Calabros paralisar-se de medo. Seus olhos se arregalaram, e sua mente foi tomada por memórias de um dia trágico, três anos antes. Zeca então fechou os olhos, reunindo toda a coragem guardada dentro de si, e abriu-os novamente, olhando para a fita em seu braço. Com determinação no olhar, voltou-se a Svar e Brunnhardt: "Vol'kor? Vocês vão para Vol'kor? Por favor! Eu peço! Eu imploro! Me levem com vocês!"


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O presente...


Uma voz distante gritava por socorro.


Os olhos de Zé Calabros se abriam com dificuldade, e as imagens do passado desapareciam com o despertar. O céu já começava a escurecer a leste e avermelhar-se a oeste. Meio atordoado, Zé foi se sentando ali mesmo na grama de sua pequena rocha. Fitou o próprio braço direito, adornado por duas fitas do Divino Pai, uma branca e uma vermelha, simbolizando promessas a cumprir.


"Acudam! Acudam!", a voz repetiu, e desta vez Zé a ouviu claramente, removendo-o subitamente de seu estupor. Num salto, Zé se pôs de pé e a procurar por quem pedia ajuda. Viu uma senhora na janela do casarão ali no alto da falésia, apontando para o oceano.


"Que que tá acontecendo?", questionou Zé, elevando a voz.


"Tem uma pessoa ali no mar!", a senhora avisou.


De imediato, Zé olhou para aquela imensidão azul-escura. A distância, notou uma forma minúscula flutuando em meio às fortes ondas do fim de tarde, sem nenhum barco por perto para ajudá-la.


Zé não hesitou: jogou o embornal no chão, desfez-se das sandálias, removeu a velha camisa e saltou para a praia vinte metros abaixo, que já era tomada pela alta da maré. Caiu sobre as pedras, algo que quebraria as pernas de qualquer outro homem, mas não o Zé: ele pousou levantando muita água e correu pela praia até alcançar a água funda. Nadou freneticamente contra as ondas fortes que tentavam impedi-lo.


Logo o mar se tornou tão profundo que Zé mal podia ver algo além de escuridão abaixo. Em meio às braçadas, sua mente se recordava da oração que pescadores o ensinaram há alguns anos.


Anaren, Anaren

Protege a quem na onda vem.

Traz o peixe e o camarão ao pescador.

Lembra que o náufrago é filho do senhor.

Prometo-lhe o sacrifício no seu altar,

seu dízimo lançado ao mar.

Rei do oceano e da tempestade,

apiede-se de seu servo, ó majestade.

A praia se tornava cada vez mais distante. Cem metros, duzentos metros... Os casarões acima das falésias já se tornavam indistintos. A forma daquela pessoa, que se agarrava com todas as forças a um pedaço de madeira ou boia indistinta, começava a ficar mais nítida.


Vinte metros os separavam. Braçada após braçada, Zé inexoravelmente se aproximava. Dez metros, e a pessoa ergueu o rosto com dificuldade e estendeu a mão. Metro a metro, a distância desaparecia, até que Calabros segurou o braço do náufrago.


E imediatamente os dois foram puxados para as profundezas.


Era como se a misteriosa boia do náufrago simplesmente desaparecesse, e todo o peso dele e de seus pertences os impelisse para baixo. O inesperado mergulho quase roubou o ar dos pulmões de Zé, mas o cabra se impulsionou para a superfície com a força das pernas e do braço livre. Rasgando o véu de trevas das profundezas, os dois voltaram ao sacolejar das ondas.


Calabros desesperadamente procurou por algo que flutuasse, mas nada encontrou. Então, puxou o resgatado para junto de seu peito e nadou de costas. O próprio náufrago ajudava-o batendo as pernas para impulsioná-los, mas as forças dele estavam no limite. A cada segundo, a tarefa tornava-se cada vez mais árdua. Ainda assim, Zé perseverou, forçando-se através das ondas.


"Eu não vou morrer aqui, Anaren!", pensou Zé. "Está me ouvindo, seu fela-d'égua?"


E por uma hora Zé Calabros nadou.


Foi só quando chegaram à praia que Zé sentiu o cansaço roubar-lhe as forças. Atraídas pela comoção, pessoas se acumulavam ali, descendo as falésias por degraus escavados nas paredes de rocha. Urraram de alegria assim que viram Zé erguer-se das águas ofegante de exaustão, mas com o socorrido seguro nos braços. O povo os cercou oferecendo ajuda, mas Zé ainda tinha forças para prosseguir mais um pouco. Tão logo estavam longe do alcance das águas, Calabros pousou o náufrago no chão e deu uma boa olhada nele.


O náufrago, com suas últimas forças escapando, logo fechou os olhos e desacordou. Era um rapaz jovem e mirrado, de traços frágeis, pele tão alva quanto um fantasma e cabelos negros que, molhados, alcançavam-no os ombros. Vestia roupas estranhas de terras distantes e tinha presa ao corpo uma pesada e resistente sacola de couro, que com certeza dificultara o salvamento. Na mão, abraçado contra o peito, portava um livro grande de capa dura com uma fivela que o impedia de ser aberto por acidente.


O livro estava absolutamente seco.


"Arre égua! Tá lascado!", murmurou Zé Calabros, "O que o diabo me trouxe desta vez?"


 

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