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Tiago Moreira

Capítulo 2: Em círculos insalubres


 
Capítulo 2: Em círculos insalubres

Quatorze anos atrás...


"Irmãzinha?", os gêmeos a procuravam.


A menina, de nove anos, escondia-se no bosque da propriedade. Seus pais demorariam a encontrá-la, mas os irmãos, sempre muito apegados a ela, conheciam aquele lugar de brincadeiras passadas.


"Por que está aqui?", questionou um deles ao vê-la sentada junto à árvore, de cabeça baixa. "A mãe está desesperada! Você está... chorando?"


"Não", ela ergueu o rosto. De fato, não havia lágrimas, mas o semblante denunciava tristeza. Fitando os dois rapazes louros, deu um suspiro e, mexendo nas tranças de suas madeixas cor de mel, revelou o que a incomodara. "Ouvi papai dizer que vocês vão embora no próximo ano."


Eles se entreolharam. "Ah, a academia", Gilberto se abaixou para que seus olhares se encontrassem. Diante dele, ela era tão pequena! "Esse dia teria de chegar, irmãzinha, você sabe."


Era o destino deles, traçado desde o nascimento: aos quinze anos, seriam enviados à academia militar em Caer'wyrm. Morariam no Bastião das Serpes, aprendendo as faculdades essenciais a um nobre de alta instância. Concluídos os três anos iniciais, se tornariam soldados no exército real. Gilberto, mais velho por questão de minutos, eventualmente retornaria para herdar título, posses e deveres do pai. Donato seguiria a carreira militar, perseguiria patentes cada vez mais elevadas, quiçá um dia tornar-se-ia general.


A menina sabia, mas não aceitava. Bem mais jovem do que os gêmeos, crescera à sombra deles. Ainda muito pequena, ouvira as histórias fantásticas que liam, sobre aventureiros intrépidos e guerreiros lendários. Por anos, brincaram juntos, emulando aqueles contos de bravura. Sempre fora o xodó dos irmãos, a princesa protegida pelos dois. "Não quero ficar sozinha", desabafou.


"Você devia se alegrar, irmãzinha!", disse Donato. Pegou um graveto no chão e fez movimentos como se empunhasse uma espada. "Seremos fortes, valentes! Como os heróis dos contos, lutando pela coroa e pela nação!"


Gilberto gentilmente afagou os cabelos dela. "Estaremos na mesma cidade, sempre perto de você! Veremo-nos nos recessos acadêmicos!"


Ela o abraçou sem nada dizer. Por mais que relutasse em aceitar o destino, sabia que não poderia desafiá-lo. Eles partiriam para se tornarem dignos da posição da família. Não estariam mais ali para brincar, para contar histórias, para defendê-la. Mas, mais do que a solidão, ela temia enfrentar sua própria sina. Afinal, nascida em berço nobre, também sua história estava definida desde o começo.


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O presente...


Karina despertou. Deitada de lado, no quarto escuro, notou a luz tímida, de uma única vela, vinda de trás. Tateou a cama, procurando o marido, mas não o encontrou deitado. Notando uma sombra, projetada na parede à frente, questionou sonolenta: "Bill?".


"Perdão, querida", Abiliardo sussurrou. "É tarde da noite, não queria acordá-la."


"Não foi culpa sua", murmurou, virando-se na cama para vê-lo. "Sonhei de novo. Com eles."


"Seus irmãos?", ele despia-se, terminando de desabotoar a camisa. "Não é de surpreender. Todos estamos tensos nesta casa. E você ainda terá de falar com seu pai pela manhã."


"Não quero pensar nisso agora", ela suspirou. "A questão na cidade, você resolveu?"


"Sim. Foi rápido, não houve problemas."


"E nossos hóspedes?"


"Em seus quartos desde antes de eu sair. Imagino que estão exauridos pela longa viagem."


Ela se sentou na cama, escorando-se na cabeceira. "Você já vem dormir?", perguntou, observando o marido semi-nu pegar o pijama, deixado sobre a mesinha de canto.


"Creio que não", ele respondeu. "Apesar de tudo ter corrido bem, ainda não me acalmei."


"Então, não se vista", ela murmurou. Apesar da penumbra ofuscar suas feições, o tom provocador denunciava o sorriso em seus lábios. Livrou os ombros das alças da camisola, desnudando o busto. "Também preciso serenar o coração."


Ele sorriu de volta. Largou o pijama, baixou a calça íntima, deixou os óculos sobre o criado-mudo e apagou a vela. Deitou-se sobre ela, beijou-a, envolveu-a nos braços. Logo, seus corpos se entrelaçaram na escuridão, tornando-se um só.


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Já era manhã. Uma batida suave na porta despertou Mara'iza. Era Gerwald, o mordomo, anunciando o desjejum.


Saindo da cama, Atsumi Mara'iza se pôs a aprontar para o grande dia. Sentia-se mais calma e segura naquela manhã do que na anterior. Seguindo o conselho recebido pelos anfitriões, escolhera trajar algo tradicional de sua terra, a fim de impressionar os aristocratas dragoninos.


Vestiu um yukatá, um quimono festivo de verão, de cores rubra e rósea e estampas florais. Na cintura, amarrou uma faixa vermelha e, sob a mesma, ocultou o kai'ken, a adaga de seu clã. Por fim, calçou apenas sandálias.


Vendo-se no espelho, satisfeita, prendeu os cabelos num coque, mas deixou duas mechas livres, pendentes para os lados da face. Conferiu, então, o grimório e a bolsa, mas só os pegaria depois, após o desjejum. Abriu, então, a porta, deixando o aposento com um sorriso triunfante no rosto.


"Eita, Malinha!", exclamou Zé Calabros, que a aguardava no corredor. "Você tá bonitona!"


"Agradeço", Mara gaguejou, surpreendida pela inesperada presença dele ali. Quase sorriu, mas fechou o cenho assim que reparou nele. "E você continua tão jeca quanto sempre."


"A gente é o que é!", ele riu. De fato, era o mesmo de sempre: deixara aberta a casaca do terno, mantivera a camisa desabotoada do peito ao colarinho e, ao invés de sapatos, calçava alpercatas de couro.


"Pelo menos está usando calças", Mara murmurou, revirando os olhos. Só não protestou mais porque Zé não participaria do encontro planejado para aquela manhã.


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"Queria poder acompanhá-los", disse Adriela, conduzindo Zé e Mara para o pórtico da mansão. "Mas a carruagem já está cheia o suficiente."


Lá fora, no pátio, Bill e Kari os aguardavam. Ambos estavam elegantemente vestidos, ele com um terno negro e chapéu fedora. Mesmo sem necessidade, levava consigo uma bengala, de cabo negro e, na empunhadura, um ornamento metálico, na forma de cabeça de dragão. Karina, ao seu lado, trajava chapéu clochê, luvas brancas e vestido colorido, com os ombros e braços à mostra. Junto aos dois estava o Vovô, na cadeira de rodas.


"Está linda, Senhorita Mara'iza", Abiliardo beijou-lhe a mão, depois auxiliou-a a subir na carruagem.


Zé entrou no veículo em seguida. Assim que se sentou, meneou a cabeça para Adriela, em despedida.


Dri, aproximando-se do Vovô, sorriu gentilmente ao sertanejo, então se voltou a Mara. "Boa sorte com o pai de Karina. A recomendação dele lhe abrirá muitas oportunidades na academia!"


Abiliardo ajudou a esposa a subir na carruagem, por fim entrou ele próprio. "Cuide da casa e do Vovô, maninha", disse num tom de provocação fraternal. "Mas não se acostume demais, que não pretendo devolver-lhe nada!"


"Seu sonho é que eu exija tudo de volta, confesse!", Dri brincou de volta. "Cuidem-se!", acenou quando a carruagem partiu.


Ignorado pelos demais, o Vovô Foster parecia alheio a tudo. Seus olhos sagazes, porém, perceberam dois corvos deixarem a vegetação e seguirem a carruagem pelos céus. Nada disse, apenas exibiu um sorriso torto na face.


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A carruagem seguia pelos bosques da região nobre de Ferônia.


"Desculpa me meter", Zé se voltou a Abiliardo, "mas tem alguma desavença entre você e sua irmã?".


Abiliardo riu da pergunta. "Hahaha, não! São apenas provocações fraternais! Adriela é a primogênita, é a herdeira de fato da casa, do banco e de nosso status na sociedade. Gosta de me lembrar que passou tudo para mim, o que é, para um Foster, tanto uma bênção como uma maldição."


"Como assim?", Mara'iza questionou.


Quem respondeu foi Karina. "Tradições. Normalmente, o maior quinhão da herança vai para o filho mais velho. Para a nobreza, em especial, o primeiro herda título e propriedades, os demais seguem carreira militar, se unem ao clero ou se tornam funcionários públicos."


"Mas, para os Fósteres", retomou Abiliardo, "a ideia de ficar preso à casa e à corte não é tão atraente. Desde pequenos, crescemos ouvindo as histórias do Vovô. Queremos seguir seus passos, sair ao mundo, assumir riscos, expandir os negócios a terras além. Sinceramente, mal posso esperar que Andreas tenha idade suficiente! O pobre menino herdará tudo!".


Karina segurou a mão do marido, trocando olhares com ele. "A família se orgulha da independência, da liberdade. De 'renegar o destino', como gostam de dizer."


"Adriela passou anos nos representando na corte, conhece muito bem os meandros da nobreza", Bill disse. "Mas seu sonho era se aventurar. Quando voltei de meus estudos no exterior, ela me passou tudo e se mudou para Câninna. Preparava-se para deixar Dragona, mas então nosso pai faleceu, o que atrasou seus planos."


"Ah, ela me falou disso ontem", Zé comentou. "Tava até arrumando barco pra viajar mundo afora! Ô mulher arretada, corajosa da peste!"


Mara'iza estranhou a intimidade de Zé com Adriela. "Como sabe tanto a respeito dela?", perguntou desconfiada.


"Ah, ontem, a gente passou conversando a tarde toda", ele respondeu sorridente. "Ela até me ajudou a treinar!"

Mara se calou, tentando disfarçar a súbita irritação.


Abiliardo e Karina se entreolharam. Ela conteve um risinho. Ele pigarreou, tratando de mudar o assunto. "Estamos indo para a Cidade Alta. Agora pela manhã, o pai de Kari deve estar na prefeitura."


"É um dos dias da semana em que ele se apresenta na administração, para prestar contas como comandante da guarda municipal", Karina complementou.


Mara'iza, recuperando a compostura, perguntou: "Estão certos de que ele me recomendará à Academia Real?".


"Não se preocupe", Karina assegurou. "Tenho certeza de que ele ficará feliz em ajudar."


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A carruagem chegou à "Cidade Alta", o centro de Ferônia. Percorreu as ruas ladrilhadas, por entre os inúmeros casarões e lojas e, logo, parou numa bela praça. Bill desceu primeiro, Zé saiu em seguida, e por fim auxiliaram Karina e Mara'iza.


"Espere-nos no banco", Abiliardo instruiu o condutor. Assim que a diligência partiu, voltou-se a Zé e Mara e apontou para a construção do lado oposto da rua, um prédio largo e alto, construído em mármore e adornado com colunas exteriores, gárgulas e altos-relevos. "Eis a prefeitura!", anunciou, puxando um relógio do bolso e conferindo o horário. "Meu sogro já deve se encontrar aí."


"Rapazes, divirtam-se na cidade, esta é uma tarefa para as garotas", Karina disse jocosamente. Beijou gentilmente o rosto do marido e, levando Mara'iza, atravessou a via.


"Por que a gente também não vai?", Zé questionou, vendo-as se afastarem.


"Meu sogro não me aprecia muito", sorriu Abiliardo. "E também tem um certo... desgosto... em tratar com pessoas pouco refinadas, especialmente os cornos. Acredite em mim, meu caro José, que teremos uma manhã muito mais agradável se o evitarmos."


"O que a gente vai ficar fazendo por aqui, então?"


"Venha, vou mostrar-lhe os arredores. Esta é a Praça Felisnero", exibiu a área, de jardins floridos, estátuas e monumentos, então apontou a bengala para o lado mais distante da praça. "Ali, fica a Assembléia Municipal".


Também era um prédio magnífico, e Zé se surpreendia com a grandiosidade das construções. "Ontem, quando távamos passando aqui, vi uma igrejona, com uns vidros de ouro, um teto redondo, umas torres e tudo o mais..."


"Ah, a Catedral do Sol! É naquela direção", apontou com a bengala, "as árvores não permitem ver daqui, mas não é longe. Deseja visitá-la, Senhor Calabros?"


"Quero demais da conta!", Zé se entusiasmou. "Quando a gente chega numa terra nova, tem que conhecer o deus dela, pra modo de não fazer nenhuma desfeita! A quem vocês rezam por aqui?"


"A maioria dos dragoninos segue a Sunth, o Sol", disse Abiliardo Foster, fazendo um gesto para que Calabros o seguisse. "Venha, vou mostrar-lhe!"


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Após breve espera, o assistente chamou: "Vossa Alteza vai atendê-las agora."


Karina e Mara'iza adentraram a sala, larga e luxuosa, com tapetes coloridos sobre o assoalho de madeira. Os móveis, incluindo mesa, cadeiras e estantes, eram feitos de madeira negra. Armas cerimoniais e quadros de paisagens e figuras históricas decoravam as paredes.


"Minha filha, há muito desejava revê-la", disse o senhor alto e vigoroso, de bigode e costeletas, que as aguardava em pé. Elegante, trajava um elaborado terno negro, com medalhas e honrarias à mostra. Os cabelos grisalhos, rugas na face e barriga inchada, apesar do porte físico, denunciavam-lhe a idade.


Karina se forçou a um sorriso e beijou-o no rosto, então estendeu a mão a Mara, trazendo-a para perto. "Papai, vim apresentá-lo à minha hóspede, Senhorita Mara'iza Atsumi, nobre sam'rai da distante Gaz'zira."


"Atsumi Mara'iza", a menina corrigiu delicadamente. Seus movimentos eram curtos, precisos e formais, conforme suas tradições. "Em minha terra, o nome da família vem primeiro. A linhagem se sobrepõe ao indivíduo."


"Perdão, Mara", Karina deu uma risadinha.


"Então, 'família vem primeiro'? Sua cultura é bastante admirável, Senhorita Mara'iza", ele comentou, então voltou-se a Karina num tom provocador. "Não concorda, minha filha?"


Diante da indireta, Kari se esforçou em não perder o sorriso. "Mara, este é meu pai", apresentou-o finalmente, "Sereníssimo Senhor Teófilo Manfredo Andrada Felisnero, Duque de Ferônia, comandante da guarda e conselheiro da coroa."


"É uma honra, Vossa Alteza", a magista se curvou gentilmente.


"O prazer é meu, cara dama", Duque Felisnero beijou-lhe a mão. Em seguida, voltou-se a Karina, desabafando decepcionado. "Mas é uma pena não ser por saudades que minha filha me visita hoje."


Mara'iza não soube como reagir. Não conhecia a história deles, mas era óbvio haver ressentimento entre pai e filha. Voltou os olhos esmeraldas a Karina, silenciosamente pedindo socorro.


"Ora, meu pai", protestou Karina, "não o visitei após o infame ataque do mascarado?".


"Sim, mas tão breve, e há quase duas semanas!", ele retrucou e, após suspirar, amenizou o tom de voz, retomando a compostura. "Perdão, isso não importa agora. Com certeza, a Senhorita Mara'iza tem assuntos importantes a tratar. Em que posso ajudá-las?"


Karina pousou a mão sobre o ombro da garota sam'rai. "Mara é uma magista, veio a nossas terras para aprimorar seus talentos na Academia Real."


"Uma magista!", Duque Felisnero demonstrou satisfação. "Não é só bela e recatada, mas também talentosa! Quais são seus talentos, minha jovem?"


Por um lado, Mara se acanhou com os elogios exagerados. Por outro, a soberba dominou-a ao falar de suas habilidades. "Manipulo energia, tempo, distâncias e outros princípios fundamentais! Contemple!", tocou o grimório a tiracolo e, com movimentos dos dedos, produziu imagens luminosas de pássaros e borboletas. "Desejo, contudo, conhecer as artes do fogo, pelas quais Dragona é tão renomada!"


"Impressionante, deveras impressionante!", o nobre comentou. "Tem grande ambição, minha cara!"


"Contudo, sendo estrangeira", Karina interrompeu, "Mara não poderá nem jurar lealdade à coroa, nem realizar toda a extensão de um curso formal. Logo, a recomendação de um nobre, especialmente um de tão alta estirpe e reconhecimento como o senhor, será essencial para garantir a ela acesso às bibliotecas e aos instrutores".


Duque Felisnero não demorou a tomar uma decisão. "Será um prazer ajudá-la! Assim, além de obter seu favor, espero também agradar a minha filha, a quem muito estimo, apesar de nossas diferenças."


O sorriso de Karina se tornou mais leve e natural. "Obrigada, papai."


Satisfeito, o duque sentou-se à mesa, prontamente puxando uma resma de papel timbrado. "Gostaria muito de conversar mais, mas há tantas coisas a tratar", disse enquanto escrevia sua missiva. "O ataque do mascarado ao porto foi a gota d'água, a coroa está decidida a caçar o meliante."


"Mas ele é apenas um ladrão de joias", observou Karina. "Por que queimaria um barco militar?"


Concentrado na escrita, ele demorou a responder. "Não sei, mas, seja qual for a razão, o criminoso tem de ser detido! Ele tentou me matar, afinal!"


Mara notou Kari fechar o cenho diante da resposta.


Assinando a nota, Felisnero guardou-a em envelope, que lacrou com seu brasão. "Ei-la, cara Mara'iza. Essa carta, mais a contribuição obrigatória à academia, garantirão seus estudos."


"Contribuição?", Mara gaguejou, surpresa.


"Sim", respondeu o duque. "Os alunos, por servirem à coroa, recebem educação gratuita. Os visitantes, contudo, precisam pagar pelos serviços. É uma exigência da própria academia, infelizmente não há nada que eu possa fazer a respeito. Há alguma questão quanto a dinheiro?"


"Não, problema algum!", a magista disfarçou um sorriso. Contudo, a notícia a preocupava. Sobravam-lhe apenas algumas moedas de baixo valor, pois sua verdadeira fortuna, em drakkares gazziranos, de nada valia naquela terra.


"Então, não há com o que se preocupar", disse o duque, preparando-se para conduzi-las até a porta. "Há algo mais que eu possa fazer por vocês?"


"Não, papai", Karina beijou-lhe novamente o rosto. "Obrigada por tudo."


Mara'iza, porém, interrompeu-o com delicadeza. "Com licença, mas, na verdade, há um outro assunto que preciso tratar."


Pai e filha se voltaram a ela, aguardando o questionamento.


"Veio comigo a esta terra um grande amigo, um homem simples, mas que muito estimo, e é desejo dele conhecer os dragões daqui. Talvez o senhor possa ajudá-lo?"


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A Catedral do Sol era uma construção fabulosa. Toda branca, com vitrais e detalhes dourados, ornamentada por altos-relevos de figuras angelicais e imagens solares. Quatro torres cercavam a abóbada central, sobre a qual se erguia um espigão fino e alto, apontando aos céus.


"Padim do céu, olha só pra isso!", Zé exclamou. Caminhava em direção à construção, através dos jardins, fontes e espelhos d'água da praça que a cercava. "Lá na terrinha, não tinha nada desse tipo, não!"


Abiliardo riu. A espontaneidade de Calabros o divertia, fazia-o lembrar dos personagens das histórias do Vovô Foster. "O culto a Sunth é bem antigo", disse em tom professoral, praticamente enciclopédico. "É uma religião vinda de Biorca, uma nação no centro-norte do continente, mas ganhou muita força por aqui. Nunca conquistou as graças da nobreza, mas acabou substituindo as velhas crenças do povo."


"E no que as pessoas acreditavam antes?", Zé questionou. Já chegavam aos degraus do templo.


"Espíritos... animais... deuses já esquecidos...", Bill enumerou, fazendo pequenas pausas. "Antes do império, havia um povo diferente aqui. As crenças dele não morreram de uma só vez, perduraram mesmo após Drago se tornar rei e formar nossa nação."


"E os nobres?", perguntou Zé, enquanto subiam os degraus. "Não seguem esse tal de Sunth?"


"Alguns, sim. Ou talvez, é difícil dizer", disse Abiliardo. "A nobreza presta homenagem ao Sol, mas isso é política, pura fachada. A crença verdadeira da aristocracia é outra..."


Naquele momento, passaram pelos portais de entrada. O interior era ainda mais magnífico. Além das filas de bancos, o altar resplandecia com a imagem do sol nascente. O teto folheado a ouro, as altas colunas adornadas e os vitrais iluminavam o local em dourado.


Maravilhado, Zé deixou o assunto de lado e perscrutou os arredores. Como não era hora de culto, o vasto salão parecia relativamente vazio, apesar das muitas pessoas que ali oravam. Um grupo em particular chamou-lhe a atenção. Eram umas vinte pessoas, entre homens, mulheres, idosos e crianças, vestidos de forma simples, mas familiar. "São cornos?", apontou, notando as feições e peles mestiças.


"Sim", Bill confirmou, ajeitando óculos e retirando o chapéu.


"O que estão fazendo aqui?", perguntou, já prevendo a resposta.


"São refugiados, provavelmente esperam por ajuda do bispo. A maioria dos imigrantes vêm da Cornália. É a única nação que nos faz fronteira por terra, afinal, se desconsiderarmos Vol'kor. Chegam sem dinheiro nem emprego, e a Igreja do Sol lhes oferece abrigo e oportunidades."


Calabros se lembrou das semanas de viagem ao lado de Mara'iza, através de montanhas, planícies, vales e rios. "Nossa, mas vieram de tão longe! E com criança e tudo!"


"Ferônia atrai muitos cornos. É a maior e mais rica cidade no sul, afinal, costuma ser a única que ouvem falar antes de deixarem suas terras. Migrantes cornos sempre foram comuns, mas, ultimamente, vieram em grandes números. Pelo visto, os tempos andam difíceis na Cornália."


Zé pensou um pouco. Sempre houve quem deixasse a Cornália por causa das agruras do sertão. Recordou-se também das ondas de retirantes que passaram por Vila Maria na época do amaldiçoado Coronel Tibúrcio Mendes. Mas, recentemente, só haveria uma possível causa para tanta gente querer ir embora. "Severino", murmurou.


Bill ouviu o sussurro e percebeu a expressão séria do sertanejo, mas nada disse.


Zé caminhou até os refugiados. "Opa!", saudou-os, "Padim seja louvado! Não esperava ver o povo da terrinha nestas bandas!".


"Salve, irmão!", um senhor respondeu. "Também veio fugido? Foi o sertão, a fome ou os cangaceiros que te expulsaram?"


"Qual o quê! Tô aqui pra fugir não!", Zé Calabros riu. "E vocês? Saíram da terrinha por causa do traste do Severino Barriga D'Água?"


"Foi sim, senhor", uma mulher respondeu, e a maioria concordou.


"O Rei do Cangaço invadiu a fazenda, matou o coronel e deixou os capangas no lugar", o mais velho retomou a palavra. "Disseram pra gente que a vida ia melhorar, mas só teve fome e morte depois."


"A gente teve que sair fugido, na calada da noite", um jovem comentou. "Senão, nos metiam chumbo!"


Zé se lembrou de Beira da Larica. Pelo visto, não fora só lá que Severino deixara cangaceiros mandando. "Olha, não sei o que vão fazer com a notícia, se vão ficar ou vão voltar, mas eu precisava contar de qualquer jeito: Severino Barriga D'Água tá morto! O bando dele acabou, pela graça de Padim!"


A notícia os deixou de olhos arregalados. Uma senhora começou a chorar, o homem à frente ficou boquiaberto, alguns agradeceram ao Divino Pai. Por um instante, a aura de tristeza deu lugar à esperança e alegria. "Tem certeza disso, homem?", o líder do grupo perguntou, "como que 'cê soube?".


"Sei porque tava lá!", respondeu convicto. Exibiu a mão cerrada e, por acaso, a manga do terno desceu um pouco, revelando as fitas amarradas no pulso. "Eu sou Zé Calabros, e eu mesmo que acabei com o desgramado, com esses punhos que a terra há de comer!"


A resposta não foi a esperada. A esperança deu lugar à descrença diante de bravata tão audaz. Alguns tentaram rir, pensando tratar-se de uma piada sem graça. Uns ficaram com raiva, outros choraram. "Como pode brincar assim com a gente?", disseram, "Isso não é brincadeira que se faça, não!".


Zé tentou insistir. "Te juro de pé junto!"


Abiliardo, porém, o interrompeu. "Não adianta insistir, Senhor Calabros", puxou-o, apontando a bengala para a saída. "Conversaremos lá fora."


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"As garotas já devem estar nos esperando no banco a esta hora, devemos ir", Abiliardo comentou, já fora do templo. "Mas preciso perguntar-lhe uma coisa, Senhor Calabros. É verdade o que disse ali dentro?"


"Mas é claro que é verdade! Pra modo de quê eu ia brincar com coisa séria? Eu tava lá, lutei do lado dos coronéis e tudo o mais! Malinha também ajudou, destruiu uma traquitana maluca que cuspia fogo! Mas, no fim, fui eu quem deu cabo do bandido do Severino!"


Bill suspirou. "É uma história impressionante, mas... esse caudilho, esse 'Rei do Cangaço' que vocês falam... a fama dele chegou até aqui. Havia quem apostasse que ninguém o pararia, que se tornaria rei dos cornos."


"Talvez até virasse, se eu não tivesse quebrado a fuça dele!"


"Peço que não espalhe essa história, por favor."


"E por que não, Seu Bill?"


Abiliardo, mesmo sendo mais baixo, encarou Zé. "É melhor não criar inimigos desnecessários. Até temos um ditado para isso: 'não desperte o dragão'."


"Não tô vendo como que isso pode fazer mal. Aquilo lá aconteceu na terra dos cornos, não é assunto pro povo daqui."


"Sim, mas... Alguns apoiavam esse Severino, queriam retornos futuros. Não creio que ele fosse tão importante a ponto de investigarem-lhe a morte, mas, Senhor Calabros, se descobrirem o que você fez, se souberem que agora está em Dragona... Você chamaria atenção, teria o nome sussurrado em círculos insalubres. Há muitos que apreciam a conformidade das massas e se inquietam com homens como você."


"Ah, Seu Bill, pr'essa gente, tô pouco me importando", Zé Calabros desprezou o aviso, mas sem a intenção de ofender o anfitrião. "Se alguém não gostar de mim, é só não entrar no meu caminho."


Estupefato com a teimosia, Abiliardo Foster não quis insistir, mas deixou um último alerta. "Os poderosos têm passos largos, ombros avantajados e visão estreita. Geralmente, quem esbarra no caminho deles somos nós. Lembre-se sempre, meu amigo: siga com cautela, ou você pode despertar algum dragão."


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Karina e Mara'iza atravessavam os jardins da Praça Felisnero. A dama dava nome e contexto às estátuas e monumentos, mas a jovem magista parecia anuviada. "O que a incomoda, Mara?"


"Dinheiro", a menina murmurou. Tirou da bolsa um de seus drakkares, exibindo-o à amiga. "Minhas moedas de nada valem nestas terras. Se não conseguir trocá-las, como pagarei a academia?"


Kari avaliou a moeda. Reconheceu o padrão kalimnoriano, mas não a cunhagem. "Ora, Mara! Estamos indo justamente ao banco! Com certeza, Bill poderá ajudá-la."


"Obrigada", Mara sorriu. Porém, estava curiosa quanto ao conflito entre as nações. "Quando parti de minha terra, imaginava que Du'ragona e Karímu'nor estariam em paz. São nações tão distantes entre si, jamais ouvi falar de uma guerra entre elas!"


"Há razões para seu desconhecimento. Por gerações, as duas nações foram aliadas", Karina informou, sua voz assumindo um tom melancólico. "E, desde a declaração de guerra, somente uma vez os exércitos se enfrentaram, na Batalha de Nemésia."


Mara sabia que Nemésia era a capital de Kalimnor, no longínquo centro-oeste do continente. "Agora que mencionou, acho que já ouvi a respeito, quando ainda era criança. Se não me engano, a cidade-capital dos kalimnorianos foi cercada, não? Por vários povos, mas não me recordo de detalhes..."


"Sim, quatro povos atacaram Kalimnor. Três, tradicionais inimigos da nação: banu'lifênios, gal'hir e amazonas. Porém, o quarto fomos nós. Éramos a maior força, investimos por mar e céu, com navios e dragões."


"Kalimnor venceu, imagino", disse Mara. "Ou não existiria mais."


"Para Dragona, foi um desastre, uma derrota humilhante. Não houve nenhum outro conflito armado desde então, mas formalmente a guerra ainda perdura, nunca houve tratado de paz."


"Não entendo! Por que Dragona trairia uma nação aliada?"


Karina suspirou. O assunto parecia pesar-lhe na alma. "Traiu ou foi traída? Há a história oficial e há... boatos... De qualquer forma, nove anos atrás, a delegação real de Kalimnor visitou Ferônia..."


"Nove anos? Não é possível!", Mara'iza, no espanto, a interrompeu. "Perdão... é que... Continue, por favor."


"Bem, Imperador Durval Kalim e seu herdeiro, Príncipe Drakyz, vieram ao encontro com nosso rei, Dom Aggros Draconato. Houve comemorações. E traição. Kalim foi assassinado, Draconato sobreviveu a um atentado. A culpa dos eventos foi atribuída ao príncipe kalimnoriano, que morreu em combate com os guardas do palácio. Então, a guerra foi declarada."


Mara'iza tentava assimilar as informações. A data chamava-lhe a atenção. Nove anos? Era a mesma época em que, na Cornália, um grupo de heróis, vindo de Dragona, derrotou o amaldiçoado Tibúrcio Mendes. E, segundo ouvira do Coronel Garrancho, um príncipe kalimnoriano os acompanhava. "Parece tudo tão absurdo!", comentou.


"Sim, aquele dia foi surreal, aterrador", Kari murmurou distante, perdida em pensamentos e memórias. "E o que veio a seguir, então... perdemos tanto naquela batalha..."


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Nove anos atrás...


Entardecia. Karina Anastásia Rasputo Felisnero, a jovem filha do duque, se refugiava nos jardins da família. Normalmente, ia ali para escapar das discussões familiares, das aulas de etiqueta e dos estudos. Ainda que efemeramente, era assim que ela evadia seu enfadonho destino.


Como sempre, lia um livro. Adorava literatura. Seus pais lhe recomendavam romances melosos, próprios para uma jovem dama, mas preferia histórias de aventura e mistério, como as que seus irmãos liam para ela quando pequena. Em segredo, também apreciava os contos picantes, com cenas tórridas ricamente descritas. Adquiria suas preciosidades nos sebos da Cidade Alta, longe das vistas da família.


Naquela tarde em particular, acompanhava as aventuras do valoroso capitão de um navio, mas sua personagem favorita era a antagonista, uma princesa pirata, bela e hábil, líder de toda uma tripulação de bucaneiros. Era um livro curto, mas divertido, e Karina, familiar aos tropos literários, já imaginava como terminaria. Provavelmente, o capitão redimiria a corsária, e ambos terminariam juntos e apaixonados.


Aquele era um dia preocupante, porém. Uma sombra pairava sobre Ferônia, e Karina recorria à fantasia exatamente para distrair-se da tensão. A cidade estava em polvorosa. O Imperador Durval Kalim, estimada visita da coroa, fora assassinado durante a noite, seu corpo encontrado em chamas, no quarto do castelo real.


Um suposto conspirador capturado, um certo Augustus Escape, inimigo declarado de Kalimnor, deveria ser executado pela manhã. Contudo, a execução em praça pública fora interrompida por um grupo de mercenários, assassinos e bandidos. Havia notícias de combates na Cidade Alta e no próprio castelo real.


Karina se preocupava com o pai, responsável pelo bem-estar da cidade, e com os irmãos, que serviam no exército. Desejava que nada lhes ocorresse e detestava sua impotência diante da situação. O livro ajudava-a a ignorar as preocupações e a lenta passagem do tempo.


Próxima a terminar mais um capítulo, Karina foi interrompida pela mãe, Duquesa Aleksandra Felisnero.


"Filha?", a senhora se aproximou. "Seus irmãos estão aqui."


Despertando para a realidade, a jovem marcou a página do livro e, erguendo-se, acompanhou a mãe de volta à mansão.


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As notícias deixaram Karina ainda mais desanimada. Apesar de não ter visto os irmãos por semanas, nada havia a comemorar com aquele breve reencontro. "Vocês já estão partindo?"


"Infelizmente, viemos apenas para nos despedir, irmãzinha", disse Gilberto. Ele e Donato tinham crescido tanto nos últimos anos. Estavam altos, vigorosos e belos, e ambos vestiam a imponente farda vermelha do exército real, com seus sabres à cintura.


"Fomos convocados, não há tempo a perder", complementou Donato. "O conspirador, Drakyz Kalim, está morto, mas a crise não termina com sua morte. Dom Aggros declarou guerra. Os dragontes foram despachados com ordens para preparar a frota. O exército está sendo mobilizado, e os dragões, despertados."


"Há a esperança", informou Gilberto, "de que, com um ataque rápido a Nemésia, antes que Kalimnor se recupere da perda de rei e príncipe, possamos acabar rapidamente com este conflito. Se o destino assim quiser, não ficaremos longe de você por muito tempo."


Karina baixou a cabeça, contendo lágrimas de preocupação. "Tenho medo do que possa acontecer. Vocês ficarão bem?"


Donato a abraçou. "Não se preocupe, irmãzinha! Somos guerreiros agora, estamos preparados para tudo! Vamos lutar, pela coroa e pela nação, e voltar sãos e salvos!"


"Além do mais, estaremos longe da linha de frente", Gilberto disse num tom descontraído, "Faremos parte da guarda real, acompanhando Dom Aggros em pessoa! Não há de existir posição mais segura!"


Karina se afastou de Donato para abraçar Gilberto. "Cuidem-se, por favor."


"Voltaremos logo, você verá!", o gêmeo mais velho assegurou.


"Comemoraremos juntos a vitória sobre Kalimnor!", o outro declarou empolgado. Ergueu o braço como se levantasse triunfante seu sabre. "Será uma grande festa!"


Escurecia. Os gêmeos se despediram. Beijaram a mãe, confortaram a irmã, então partiram. Demonstravam muita segurança, mas, enquanto o olhar de Karina os acompanhava na carruagem cada vez mais distante, ela temia pelo futuro. Por vários dias, ficaria sem força de vontade para concluir seu livro.


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Três longos meses se passaram.


No primeiro, nada parecia ocorrer. Kalimnor era uma terra distante, e a frota dragonina precisaria margear todo o norte e noroeste do continente para alcançá-la. Exceto por curtas e esparsas mensagens mágicas enviadas à academia, pouco se sabia do que transcorria na jornada.


Pouco mais de trinta dias após a partida, porém, uma única e aterradora notícia foi recebida pelos magistas.


"A ofensiva foi derrotada. Dom Aggros Draconato está morto."


A nação se desesperou. Corriam dúvidas e boatos sobre quantos e quais dragoninos teriam perecido no conflito. Contudo, quase dois meses transcorreriam até que a frota retornasse. Só então a extensão das perdas seria conhecida, e o luto poderia começar.


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Silêncio. Apesar do sol intenso da manhã, a brisa parecia tão fria...


O Arcebispo do Sol dizia palavras de conforto à multidão, enquanto os sacerdotes das Revelações realizavam ritos mais discretos sobre as lápides, com incenso e orações sussurradas na velha língua imperial. Centenas de soldados e nobres presenciavam a cerimônia, e milhares de plebeus faziam suas homenagens além dos portões do cemitério.


"Nesta data, no centésimo octogésimo segundo ano da Dinastia Draconato, sob a luz reconfortante do Sol, nos reunimos em solene despedida. Hoje, honramos homens de bravura, que morreram pela coroa e pela nação. Ainda mais importante, aqui estamos para nos lembrarmos de nosso rei."


Vestida em negro e coberta por um véu, a rainha, Dona Carlota Elisabete, permanecia em silêncio diante do monumento ao marido. Mantinha ao seu lado o futuro rei, o pequeno Aristos, apenas uma criança que chorava numa dor indizível.


"Dom Aggros Draconato foi um homem de coragem, admirado pelo povo, carinhoso com a família, defensor da justiça, protetor da nação. Que ele descanse ao lado de seus ancestrais, e que sua memória nos ilumine como o Sol, guiando-nos com sua sabedoria."


Karina, contudo, não conseguia se atentar às palavras. Enquanto seus pais, duque e duquesa, ouviam a homenagem em melancólico silêncio, a moça se afastou sorrateiramente, perdida na dor que teimava em se extravasar em lágrimas.


Ao redor do monumento ao rei, estavam imensas lápides, com os nomes dos que caíram em batalha. Poucos corpos puderam ser recuperados, então, para muitos deles, tudo o que lhes restava era aquela homenagem.


Mais cedo, Karina tinha passado diante daqueles memoriais. Já sabia, portanto, onde estavam os nomes que lhe importavam. Não demorou a encontrá-los, e, cedendo à necessidade de chorar, passou gentilmente os dedos sobre as letras, sentindo o relevo dos entalhes.


Gilberto Augusto Rasputo Felisnero.


Donato Alteroso Rasputo Felisnero.


Seus queridos irmãos. Seus eternos protetores.


Karina Felisnero sempre temera o destino traçado para ela. Imaginava que, quando chegasse a hora de enfrentá-lo, teria os gêmeos ao seu lado, dando-lhe forças. Agora, porém, tão perto de seu décimo quinto aniversário, tinha de aceitar que estava verdadeiramente sozinha.


 

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